São Paulo, quarta-feira, 18 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A última quimera

JEFFERSON PÉRES

Às vezes eu me sinto atordoado, sem querer acreditar no que vejo, ao constatar como o Partido dos Trabalhadores, no poder, descaracterizou-se, ou melhor, degenerou, esquecendo o discurso passado e jogando por terra as bandeiras que desfraldou por tantos anos e que tantas esperanças despertou em grande parte do povo brasileiro.
Sinto-me particularmente chocado porque durante oito anos, no Senado, convivi com a bancada do PT, então na oposição ao governo Fernando Henrique Cardoso. Foi quando, por cima de diferenças ideológicas, aprendi a admirar esse partido, em razão de sua postura ética, que parecia de uma autenticidade inquestionável.
Em todas as memoráveis batalhas travadas naquelas duas legislaturas, lá estávamos, lado a lado, eu e os senadores petistas, a defender as mesmas posições. Fosse a abertura de processo para apurar desvios éticos de senadores, fosse a criação de Comissões Parlamentares de Inquérito, fosse ainda a condenação de projetos lesivos ao interesse público, eu não tinha nenhuma dúvida de que eu e o PT estaríamos na mesma trincheira.


Entendo que o PT tenha abandonado a utopia ideológica. Mas não entendo que tenha abjurado a utopia ética


Foi exatamente por isso que apoiei o Lula no segundo turno da eleição presidencial. Mais do que a esperança, tinha a convicção de que o PT e seus aliados históricos, uma vez no poder, começariam a mudar os costumes políticos deste país, imprimindo absoluta seriedade ao trato da coisa pública.
Inexprimível, portanto, a minha decepção ao vê-los usar o poder com a mesma falta de escrúpulo dos outros, repetir tudo aquilo que sempre condenaram, praticar o fisiologismo mais reles e se aliar ao que há de pior na política brasileira. Um espetáculo deprimente, que se reproduz em quase todos os Estados, nos quais não se pejam de se unir nem mesmo à escória em troca de cargos ou de apoio eleitoral.
Entendo que o PT tenha abandonado a utopia ideológica, uma vez que o projeto socialista desmoronou junto com o Muro de Berlim. Mas não entendo nem desculpo que tenha abjurado a utopia ética, configurada no compromisso de conciliar a política com a decência, especialmente no exercício do poder.
Insubsistente, ao meu ver, o argumento de ganho para o processo político com o desaparecimento do maniqueísmo anterior. Ganho haveria se tivesse havido homogeneização positiva, com todos assumindo compromissos éticos. Com o abandono destes pelo PT, ocorreu um nivelamento por baixo e, portanto, uma perda para a vida pública em nosso país.
Não é que a ética fosse exclusividade dos petistas, uma vez que em todos os partidos existem pessoas sérias. Mas essa era a marca identificadora do PT, que o distinguia como ente coletivo, a manter a esperança nessa utopia possível. A partir de agora, na percepção social, ética é apanágio individual, excepcionalmente encontrado. No geral, aos olhos de todos, partidos são "societas sceleris", legalizadas, com o propósito de assaltar o poder.
Nem se recorra à desculpa da ética da responsabilidade, invocada por Max Weber, que serve para aplacar consciências culpadas, mas não para justificar a renúncia de valores irrenunciáveis em qualquer circunstância.
Se eu me sinto assim, amargurado, imagino como se sentem os integrantes da velha esquerda ao assistirem a esse "formidável enterro da última quimera", isto é, do que parecia nobre e puro na política brasileira.
Que lástima!

Jefferson Péres, 72, advogado, senador pelo PDT-AM, é o líder do partido no Senado.


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