São Paulo, sexta-feira, 18 de agosto de 2006

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JOSÉ SARNEY

A Fidel o que é dele

A METADE do século passado foi marcada na América Latina pela Revolução Cubana. Cuba foi o pivô da maior crise ocorrida durante Guerra Fria. A firmeza de Kennedy e a sensatez daquele camponês esperto Nikita Kruschev conjuraram o conflito nuclear. Como hipotecas ficaram a retirada de armas nucleares da Turquia e o compromisso dos Estados Unidos de não invadirem Cuba. Dois homens marcaram profundamente a história da América Latina: Bolívar e Fidel. Bolívar com seu sonho integracionista e seu memorável carisma. Fidel é o herói dos tempos modernos. A revolução romântica contra a ditadura, movida pelos ideais de liberdade desfraldados em Sierra Maestra para derrubar o tirano sanguinário. Vivi intensamente o período inaugural do que agora parece chegar ao fim. Fizemos discursos inflamados. Vitoriosa a luta, nós da UDN do fim dos anos 50, Carlos Lacerda à frente, convidamos os vencedores cubanos para virem ao Brasil explicar o que fora a caminhada para a democracia. Participei do comício da Candelária e ouvi Fidel, teatralmente, parar seu discurso e indagar: "¨Como voy, Camilo?" "Vas bien, Fidel". Camilo (Cienfuegos) era dos comandantes da Sierra Maestra. Por coincidência, estava nas Nações Unidas, em 1961, quando Raul Roa anunciou a adesão de seu país ao comunismo. Foi um deus-nos-acuda, mas era o caminho previsível para os jovens revolucionários, que já se orientavam nitidamente para a esquerda. Vieram o vexame da baía de Porcos, a crise dos foguetes e a consolidação de Cuba como pólo de irradiação do movimento comunista. Cuba sobreviveu à União Soviética. Fidel envelheceu. Conheci-o com certa intimidade. Pude aquilatar o quanto de mito já existia nesse homem que se convertera em referência mundial do embate contra o gigante americano. Reatei as relações do Brasil com Cuba e fui o primeiro a propor a sua entrada no sistema americano na reunião do Grupo dos Oito em Acapulco. É com a visão desse passado que vejo seu corpo dar avisos de fragilidade. Dos grandes homens, o que vale não é verdadeiramente sua vida, mas a simbologia da vida. Desgarram-se deles, por vezes, as manchas cruéis da existência. Fidel Castro, hoje, é uma figura que pertence à história, assim como Bolívar. Sua densidade não nasce do martírio, como Che Guevara, mas da construção de uma idéia força. Como Ortega, antes, na Nicarágua, Chávez busca o posto e a aura de Fidel. Objetivos impossíveis de serem atingidos. Falta ao presidente venezuelano biografia e sobra-lhe petróleo.

jose-sarney@uol.com.br


JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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