São Paulo, segunda-feira, 18 de agosto de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Olimpíada na era dos direitos humanos

MARISA VON BÜLOW


A novidade da Olimpíada de Pequim não é o seu uso político. Para compreender o que mudou, vale a pena voltar aos Jogos do México

AO CONTRÁRIO do que alguns críticos do regime político chinês têm afirmado, a decisão de realizar a Olimpíada em Pequim foi positiva do ponto de vista do debate sobre a situação dos direitos humanos naquele país. O slogan "O mundo está de olho", utilizado por ativistas de direitos humanos em relação aos Jogos de 2008, capta bem o fato de que o evento tornou mais visíveis as ações de um dos últimos governos comunistas do planeta. O uso político dos Jogos não é, em si, uma novidade. Em 1906, Peter O'Connor, inconformado por ter sido colocado na equipe britânica, levantou a bandeira irlandesa ao ganhar sua medalha. Em 1936, em Berlim, atletas coreanos denunciaram que o Japão (que então ocupava a Coréia) os havia obrigado a adotar nomes japoneses e a vestir o uniforme daquele país. No México, em 1968, atletas norte-americanos levantaram seus punhos no ar durante cerimônia de premiação, em protesto contra o racismo. Em 1972, em Munique, o seqüestro de 11 membros da equipe de Israel por um grupo palestino terminou em um banho de sangue cujas conseqüências são sentidas até hoje. A novidade da Olimpíada de 2008, portanto, não é o uso político do maior evento esportivo do mundo, mas a intensidade da polêmica e sua expansão em nível global muito antes da abertura dos Jogos. Para compreender o que mudou, vale a pena voltar aos Jogos do México. 1968 foi, como todos sabem, um ano especialmente conturbado. O México não foi exceção. Poucos dias antes da abertura da Olimpíada, a polícia mexicana abriu fogo contra estudantes que protestavam pacificamente, provocando a morte de centenas (até hoje não se sabe ao certo quantos). O evento entrou para a história com o macabro título de "O Massacre de Tlatelolco". Os líderes do movimento estudantil imaginavam que a Olimpíada poderia ser tanto uma oportunidade para divulgar as suas demandas como uma maneira de se proteger, apostando que não seriam reprimidos às vésperas dos Jogos. Porém, o governo mexicano conseguiu limitar o acesso a informações sobre o ocorrido e colocou a culpa das mortes na ação de agitadores do próprio movimento. Lorde Exeter, vice-presidente do Comitê Olímpico Internacional à época, disse: "Os protestos nada têm a ver com os Jogos". O paralelo entre as Olimpíadas de 1968 e de 2008 ajuda a compreender as importantes mudanças ocorridas nesse período. Dois processos são especialmente relevantes. Por um lado, a opinião pública mundial tem se mostrado mais sensível às denúncias de violações aos direitos humanos, o que é resultado do processo histórico de construção do que Norberto Bobbio chamou de "A Era dos Direitos". Por outro, as organizações de defesa de direitos se profissionalizaram e estão articuladas em extensas redes transnacionais que permitem acessar e distribuir informação de forma muito mais eficiente do que no passado. Para ter uma idéia da capacidade dos novos atores, as primeiras iniciativas no sentido de vincular os Jogos à causa dos direitos humanos datam de antes de 2001, ano em que foi decidido que a China sediaria o evento. Um bom exemplo de campanha global é aquela lançada pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, que, em uma jogada visual inteligente, substituiu os anéis do famoso logo olímpico por algemas, em protesto contra as violações aos direitos humanos de jornalistas. Dois assuntos em especial, ambos relacionados a direitos humanos, fizeram com que a passagem da tocha olímpica nas semanas anteriores à abertura dos Jogos se tornasse uma sucessão de imagens de protestos mostrados ao vivo: o genocídio em Darfur e a repressão no Tibete. Com relação ao primeiro, organizações e celebridades têm insistido para que a China utilize a sua influência política e econômica para parar o genocídio no Sudão. Já o segundo tema passou a ganhar maior importância devido à recente repressão às mobilizações pacíficas de tibetanos. Apesar das tentativas do governo chinês de limitar o acesso ao Tibete, as críticas vieram do mundo inteiro. Quarenta anos depois, a China não consegue repetir o feito do governo mexicano de 1968. Ainda não se sabe que impactos concretos terão as campanhas e os protestos, mas já é possível afirmar que geraram maior debate sobre o tema dos direitos humanos. Pelo menos por alguns meses, o regime chinês teve suas políticas avaliadas com lupa e foi obrigado, mais de uma vez, a justificar suas ações. Só por isso já vale a pena celebrar a realização da Olimpíada deste ano.


MARISA VON BÜLOW, 37, doutora em ciência política pela Universidade Johns Hopkins, é vice-diretora do Instituto de Ciência Política da UnB (Universidade de Brasília).


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