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São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 2003

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FERNANDO DE BARROS E SILVA

Vestido de noiva

A prefeita vai casar. Assim a revista do jornal "Diário de S. Paulo" anunciava em sua capa do último domingo a reportagem de 14 páginas sobre a vida privada de Marta Suplicy, metade das quais ocupadas por uma entrevista de cabeleireiro, na qual a prefeita se demorava em elogios ao noivo, Luis Favre, e confidenciava em detalhes como será a cerimônia de casamento, no próximo sábado.
Muito à vontade na condição de colunável, Marta fez questão de exibir seu deslumbramento amoroso e exercitou as várias possibilidades da frivolidade, aliás com muito talento.
O casal foi fotografado na intimidade de casa (ele mastigando pepinos), fazendo supermercado (ela comprando goiabas), junto no carro, na ópera, tomando café numa padaria ou inaugurando na periferia uma das unidades do escolão -o CEU, carro-chefe da campanha da reeleição. A impressão provocada pelo conjunto é que Marta administra não a cidade de São Paulo, mas o castelo de "Caras".
No mesmo fim de semana, a revista "Época", também das Organizações Globo, trazia na capa da edição que circulou em São Paulo uma foto de Marta com rostinho de boneca e, logo abaixo do sorriso, a pergunta: "Eleições municipais: quem pode com ela?". Copa e cozinha. Coincidência ou não, uma notável divisão de tarefas.
Não se trata mais, ou apenas, da dissolução das fronteiras entre o público e o privado -velha trincheira da vida republicana-, mas da manipulação publicitária da intimidade transformada em notícia e espetáculo, cujos propósitos parecem claros.
Vale reparar no curto-circuito de um pequeno trecho colhido no "Diário": "Estou na dúvida é se vou pôr um casal de noivinhos no bolo ou não. Quero uma coisa simples e ao mesmo tempo muito bonita. Estou tentando arrumar essa equação e acho que estou conseguindo. A entrada será bastante rígida, não só porque eu quero que estejam presentes só as pessoas que convidei, mas porque o presidente da República deve estar presente".
Do casal de noivinhos ao presidente da República, a passagem é impagável pelo que reúne. É como se, pela voz de Marta, falassem duas pessoas -algo como Angélica e Margaret Thatcher.
Ao contrabandear, com ares de inocência, aflições e expectativas da noiva para o palco da política e inscrevê-las na história da campanha eleitoral, Marta está em sintonia com o novo jeito petista de governar -do qual ela, de certa forma, ainda é a vanguarda. Entre as muitas coisas que assimilou rapidamente, nada contaminou mais o PT do que a convicção de que "a propaganda é a alma do negócio".
Marta sabe disso. Projetada pela TV, chegou à política por uma via de acesso mais frequentada pela direita. Seu quadro no "TV Mulher", extinto há quase 20 anos, nada tinha de obscurantista, pelo contrário. De modo inovador e corajoso, a então sexóloga explicava, didaticamente e sem eufemismos, onde se localizava o clitóris, chamando a atenção para as possibilidades do orgasmo feminino. Num país analfabeto e pobre, era quase uma revolução de utilidade pública.
Em rota declinante no mundo e já assimilado pelo mercado, o feminismo se oxigenava de forma inusitada na TV brasileira. Eram tempos heróicos, aqueles.
A vida deu voltas e o PT se tornou o partido da ordem que condenava. Estará bem representado pela presepada cafona da elite e seu vestido de noiva.


Fernando de Barros e Silva é editor de Brasil. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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