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FERNANDO DE BARROS E SILVA
Vestido de noiva
A prefeita vai casar. Assim a revista do jornal "Diário de S. Paulo" anunciava em sua capa do último
domingo a reportagem de 14 páginas
sobre a vida privada de Marta Suplicy,
metade das quais ocupadas por uma
entrevista de cabeleireiro, na qual a
prefeita se demorava em elogios ao
noivo, Luis Favre, e confidenciava em
detalhes como será a cerimônia de casamento, no próximo sábado.
Muito à vontade na condição de colunável, Marta fez questão de exibir
seu deslumbramento amoroso e exercitou as várias possibilidades da frivolidade, aliás com muito talento.
O casal foi fotografado na intimidade de casa (ele mastigando pepinos),
fazendo supermercado (ela comprando goiabas), junto no carro, na ópera,
tomando café numa padaria ou inaugurando na periferia uma das unidades do escolão -o CEU, carro-chefe
da campanha da reeleição. A impressão provocada pelo conjunto é que
Marta administra não a cidade de São
Paulo, mas o castelo de "Caras".
No mesmo fim de semana, a revista
"Época", também das Organizações
Globo, trazia na capa da edição que
circulou em São Paulo uma foto de
Marta com rostinho de boneca e, logo
abaixo do sorriso, a pergunta: "Eleições municipais: quem pode com
ela?". Copa e cozinha. Coincidência ou
não, uma notável divisão de tarefas.
Não se trata mais, ou apenas, da dissolução das fronteiras entre o público
e o privado -velha trincheira da vida
republicana-, mas da manipulação
publicitária da intimidade transformada em notícia e espetáculo, cujos
propósitos parecem claros.
Vale reparar no curto-circuito de
um pequeno trecho colhido no "Diário": "Estou na dúvida é se vou pôr um
casal de noivinhos no bolo ou não.
Quero uma coisa simples e ao mesmo
tempo muito bonita. Estou tentando
arrumar essa equação e acho que estou conseguindo. A entrada será bastante rígida, não só porque eu quero
que estejam presentes só as pessoas
que convidei, mas porque o presidente da República deve estar presente".
Do casal de noivinhos ao presidente
da República, a passagem é impagável
pelo que reúne. É como se, pela voz de
Marta, falassem duas pessoas -algo
como Angélica e Margaret Thatcher.
Ao contrabandear, com ares de inocência, aflições e expectativas da noiva
para o palco da política e inscrevê-las
na história da campanha eleitoral,
Marta está em sintonia com o novo
jeito petista de governar -do qual ela,
de certa forma, ainda é a vanguarda.
Entre as muitas coisas que assimilou
rapidamente, nada contaminou mais
o PT do que a convicção de que "a
propaganda é a alma do negócio".
Marta sabe disso. Projetada pela TV,
chegou à política por uma via de acesso mais frequentada pela direita. Seu
quadro no "TV Mulher", extinto há
quase 20 anos, nada tinha de obscurantista, pelo contrário. De modo inovador e corajoso, a então sexóloga explicava, didaticamente e sem eufemismos, onde se localizava o clitóris, chamando a atenção para as possibilidades do orgasmo feminino. Num país
analfabeto e pobre, era quase uma revolução de utilidade pública.
Em rota declinante no mundo e já
assimilado pelo mercado, o feminismo se oxigenava de forma inusitada
na TV brasileira. Eram tempos heróicos, aqueles.
A vida deu voltas e o PT se tornou o
partido da ordem que condenava. Estará bem representado pela presepada
cafona da elite e seu vestido de noiva.
Fernando de Barros e Silva é editor de Brasil.
Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo
de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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