São Paulo, domingo, 18 de setembro de 2005

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Tem limite?

LAYMERT GARCIA DOS SANTOS E FRANCISCO DE OLIVEIRA

Os paradoxos não param de proliferar: no poder, o Partido dos Trabalhadores paga mensalão para deputados da direita votarem leis neoliberais. O presidente reconhece que sua legenda tem caixa dois, mas não admite que alguém possa discutir ética com ele.
O PSDB pede apuração rigorosa das denúncias, mas não aceita que o esquema de Marcos Valério nasceu na era FHC. O governo segue à risca a ortodoxia capitalista, mas quer apoio dos operários, dos movimentos sociais e do povo em geral.
A elite brasileira prefere um operário a um empresário na Presidência. Lula acusa "as elites" de quererem desestabilizar o seu governo, enquanto o correspondente do "New York Times" escreve: "Se há uma conspiração no país, ela é comandada pela oposição e grandes empresários de São Paulo [e visa] manter Lula no poder, e não tirá-lo".
O maior paradoxo, porém, é o consenso de que a crise nada tem a ver com a economia, o que exige de todos um esforço "cívico" para circunscrevê-la à esfera jurídico-política e moral; de quebra, e como decorrência, impõe-se a idéia de que se trata de um desvio que precisaria ser sanado com uma "reforma política", e até mesmo com a desconstituição da Constituição! Quando na verdade a questão é o oposto: se a política hoje se reduz a uma cena grotesca -que tem como trama central a desqualificação da representação política, a desmoralização da esquerda no Brasil e, com ela, a liquidação da resistência ao neoliberalismo- é porque foi submetida aos ditames do mercado.
Não há "refundação" do PT, cassação "exemplar" de deputados ou "transparência" nos gastos de campanha que possam dar conta do recado. Em lugar do aparelhamento do Estado pelo PT, é o contrário que ocorre: o partido foi aparelhado pelo Estado, não passa de um braço deste para a realização de funções estatais. Entre as quais a primeira de todas: o controle da sociedade.


O PT é um braço do Estado para realizar funções estatais. Entre as quais a primeira de todas: o controle da sociedade

Não deixa de ser irônico constatar que Lula chegou "lá" pelas mãos do mesmo marqueteiro que agora contribui para destituí-lo. Sabe-se que o presidente petista optou por aprofundar a implantação da lógica neoliberal de seus antecessores; mas não se vê menção ao fato de o partido ter começado a abraçá-la ao substituir a política pelo marketing. Pois foi na estratégia de suas campanhas que o líder e o PT renderam-se ao neoliberalismo. Sempre se precisou de dinheiro para vencer eleição; em tempos neoliberais, porém, o processo exige muito dinheiro.
O problema é incontornável, torna a corrupção endêmica e se agrava porque a relação marketing-corrupção não se restringe ao campo eleitoral se pensarmos, com Deleuze, que, no capitalismo atual, a corrupção ganha uma nova potência quando o marketing se torna "o instrumento de controle social e forma a raça impudente de nossos senhores". Nesse sentido, o "timing" dos eleitores e militantes do PT está atrasado: o "escândalo" maior não reside na revelação das "mutretas" -escandalosa não é a desconstrução do PT, é a construção da vitória de Lula e de seu governo em bases neoliberais.
Parafraseando o filósofo, só existe uma verdade universal no capitalismo contemporâneo: o mercado. Por isso mesmo, o neoliberalismo considera que o Estado não deve governar para a sociedade. Nunca é demais repetir: trata-se de governar para o mercado, e não por causa dele, o que implica regular a sociedade para que ela se curve aos interesses econômicos.
É o que o presidente e o seu "staff" vinham escrupulosamente fazendo, até mesmo quando votos foram comprados para obter a aprovação da reforma da Previdência e da Lei de Biossegurança. Entretanto governar para o mercado tem um ônus que não parece ter sido bem compreendido: na medida em que a política consiste em não ter política, fica impossível servir ao mercado e, ao mesmo tempo, pretender monopolizar no plano político a intermediação de seus interesses.
Nesse sentido, o conflito Palocci/Dirceu, que alimentou a surda luta palaciana pelo poder até a eclosão do escândalo, pode ser visto como a expressão dessa incompatibilidade e sugere, aliás, o caráter anacrônico da iniciativa de aparelhar o Estado, cujo risco seria a emergência de uma instância com alguma autonomia em relação ao mercado.
A crise é um episódio de uma espécie de "golpe de Estado permanente" perpetrado pelo mercado contra as instituições republicanas e democráticas. Há já algum tempo o capitalismo vem se mostrando incompatível com a democracia. Na periferia, tal incompatibilidade reveste-se de tons dramáticos, pois a aceleração permanente da economia não se compatibiliza com instituições políticas, cuja tarefa é, precisamente, regular a economia.
Portanto, quando todos concordam em evitar a contaminação da economia pela política, estão apenas preparando a próxima crise. Os políticos e os governos parecem mariposas: voam em direção àquilo que os queima e os torna descartáveis. Vejamos em que estado está a crise: a blindagem do presidente parece urgente, quando ela não é mais necessária, pois o impeachment político já foi decretado. Faltam-lhe as formalidades jurídicas que, aliás, busca-se evitar pelas repercussões econômicas. Quem governa? A resposta está lá atrás: o mercado.

Laymert Garcia dos Santos, sociólogo, é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Francisco de Oliveira, economista e sociólogo, professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é coordenador científico do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da USP.


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