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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Estado laico e a religião
DANIÈLE HERVIEU-LÉGER
Uma instituição religiosa não pode prescrever aos fiéis práticas e comportamentos que os conduziriam à contravenção das leis
UM ESTADO no qual as autoridades religiosas não fazem
parte da regulação da vida pública: essa é a definição mais simples
que podemos dar a um Estado laico.
Isso significa que a elaboração do
Direito é responsabilidade apenas do
poder público. Consequentemente,
uma instituição religiosa não pode, de
nenhuma forma, prescrever aos fiéis
práticas e comportamentos que os
conduziriam à contravenção das leis.
Essa proposta é suficiente para definir as condições em que as manifestações religiosas são aceitáveis em um
Estado laico: é preciso que não contradigam os princípios fundamentais
que a Constituição define, as leis e regras que regem a sociedade a que dizem respeito e da qual o Estado é a garantia. Em todos os outros casos, o
Estado deve intervir para impedi-las.
Mas tal proposta não implica que as
religiões sejam condenadas à invisibilidade no espaço público. Nas sociedades democráticas, o livre exercício
da liberdade religiosa é um princípio
fundamental, e o Estado deve, necessariamente, assegurar sua proteção.
Ocorre que a liberdade religiosa
não se refere só à liberdade de consciência privada. Refere-se, igualmente, ao direito a cada um, e de toda a comunidade, de exprimir publicamente
suas crenças e de praticar seu culto.
Um Estado democrático deve, aliás,
zelar, em uma sociedade pluralista,
para que todas as comunidades tenham, nessa questão, direitos iguais.
Porém, a condição da livre expressão das crenças e das práticas religiosas é que elas não transgridam, em
nenhum momento, a ordem pública.
Os princípios são simples. Colocá-los em prática é, evidentemente, muito mais complicado. De um lado, porque a definição da transgressão à ordem pública é sempre delicada e sujeita à interpretação: ela é vista, por
exemplo, no caso das controvérsias
em relação aos signos e às vestimentas no espaço público.
De outro lado, porque as religiões
que reivindicam para si uma verdade
absoluta são regularmente propensas
a contestar a legitimidade das autoridades civis, que utilizam, como argumento, a manutenção da ordem pública para limitar tais manifestações
de sua expressão.
Se certos conflitos -como o trajeto
de uma procissão ou o nível de barulho tolerável em um lugar de culto-
podem parecer anedóticos (o que não
significa que não possam ser violentos), há os que tocam questões graves,
como o dever de portar armas -muitas vezes recusado por certos grupos
religiosos- ou a obrigação de aplicar
vacinas em crianças.
Esses conflitos são exacerbados
quando tratam de religiões cuja presença no espaço público não é aclimatada adequadamente ou que não fazem parte intrínseca da cultura comum de uma sociedade.
O debate sobre a aceitabilidade de
manifestações religiosas aos olhos da
ordem pública é, então, misturado a
outras questões que tocam o sentimento -nem sempre claramente expresso- que essas novas expressões
religiosas poderiam contestar dessa
cultura comum. Seria uma ameaça à
identidade coletiva nacional.
A junção pode então se dar livremente entre sentimento e impulsos
xenófobos e racistas, que a expansão
de fluxos migratórios, no contexto de
crise econômica, tende a alimentar.
Vemos claramente essa questão
nos debates que tratam o lugar do islã
na França e em todas as sociedades
europeias. E na responsabilidade direta do Estado laico de coagir essas
tendências, preenchendo plenamente seu papel de garantidor do pluralismo religioso.
No entanto, sobre ele recai também
a responsabilidade de não ferir os
princípios fundamentais que garantem as práticas que qualquer grupo
religioso possa prescrever aos seus
fiéis, crenças e comportamentos que
limitem seu acesso ao exercício pleno
de suas liberdades de cidadãos e de direitos que são os seus enquanto seres
humanos. Seria necessário, para isso,
editar leis específicas para enquadrar
a atividade de grupos religiosos?
Sabemos que o problema foi evidenciado na França -especificamente em relação a grupos radicais considerados sectários, no caso do uso de
códigos religiosos na escola.
É grande o risco de que tais intervenções objetivas possam sempre ser
interpretadas como uma tomada de
partido direta do Estado na discriminação cultural de certas populações
ou na definição de formas social e politicamente legítimas -religiosamente corretas, da religião, formas que ele
não tem que conhecer.
Essa tomada de risco é um tanto
quanto inútil na maior parte do tempo, pois o direito comum fornece todo
o arsenal jurídico necessário para lutar contra as práticas religiosas não
aceitáveis.
A utilização de todos os recursos do
direito comum contra os abusos e impedimentos de religiões é a forma
mais razoável que o Estado laico tem
para preservar e reforçar o papel arbitral que é seu, manifestando cuidado
estrito de respeitar a si mesmo e de fazer respeitar a liberdade religiosa.
DANIÈLE HERVIEU-LÉGER , socióloga, é administradora
da Escola de Economia de Paris. Foi diretora de Pesquisa
no Centro Nacional da Pesquisa Científica, na Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais, e diretora do Centro de
Estudos Interdisciplinares dos Fatos Religiosos.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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