São Paulo, sábado, 18 de novembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MÁRIO MAGALHÃES

O câncer dos políticos

NO PAÍS onde o cavalariano João Baptista Figueiredo escondeu enquanto foi possível os galopes do coração, até entrar na faca em Cleveland, e os médicos de Tancredo Neves anunciaram como diverticulite o que era um tumor, há, enfim, boa nova.
É obra do vice-presidente José Alencar a versão recente da rara equação em que a soma de doença e palácio resulta em transparência, e não em segredo e fraude. O cabeça da linha sucessória informou o presidente sobre o câncer no abdome, revelou-o aos cidadãos, afastou-se do governo e se submeteu a uma cirurgia de sete horas.
A saúde dos homens públicos tem interesse público, e não apenas privado. É um direito da sociedade saber se o eletrocardiograma ou o exame histopatológico dos tumores dos governantes sugerem mandatos inacabados ou não. Se querem divulgar a freqüência com que marcam hora no aplicador de botox, é problema deles. Outra coisa é sonegar incertezas que podem ter conseqüências em vidas alheias.
É possível que o estigma de certos males contribua para que tantos políticos os tenham como incômodo que diga respeito apenas a eles e a seus círculos íntimos.
Estão errados como os chefões do Kremlin que empulhavam sobre suas fragilidades físicas e mentais com a determinação de um torturador stalinista. Ou como um homem de bem, o francês François Mitterrand, cujo empenho em dissimular o câncer (informação de relevância pública) era grande como a dedicação para manter em segredo puladas de cerca e procriação fora do casamento.
O Brasil ganha quando o (ex)ministro Luiz Gushiken assume o câncer e, lição para tanta gente, mostra que a doença não é um atestado de óbito. Perde quando um ministro de Lula some por semanas sem dizer por que e um antigo ministro se ausenta da campanha da reeleição como por encanto.
Expor as traições da saúde exige coragem pessoal e altivez democrática, como ensinou Mario Covas na sua caminhada derradeira. Ou como Bill Clinton, ao correr ao hospital para se operar antes que um infarto o fulminasse -e depois contar os detalhes sobre o coração.
Por maior que eventualmente seja o constrangimento particular, é o comportamento de homem público que precisa prevalecer em quem escolheu essa condição. De algum modo, é um preço a pagar.
A transparência rende outros benefícios. Para citar uma só doença, expõe a milhões de pessoas que nem todo tumor é câncer, nem todo câncer mata, que câncer tem cura e, se o tumor da próstata é maligno, a cirurgia não implica impotência compulsória.
Com seu combate corajoso, José Alencar presta um serviço e dá exemplo.


mariomagalhaes@folhasp.com.br

MÁRIO MAGALHÃES
é repórter especial da Folha.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Plínio Fraga: Madame e os trópicos
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.