São Paulo, terça-feira, 18 de novembro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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O conselho do governador

DAVI DE LACERDA


O pragmatismo do conselho que o governador me deu reflete o descaso do Estado com os médicos da rede pública de saúde

A SÃO Paulo Companhia de Dança realizou no dia 7 deste mês uma magnífica apresentação em comemoração ao seu primeiro ano de existência. Entre as várias autoridades presentes estava José Serra. Ele escreveu a introdução do programa e merece grandes elogios pelas realizações da companhia. O belo espetáculo foi seguido de um coquetel, no qual tive a honra de parabenizar o governador pessoalmente pela alta qualidade técnica alcançada por uma companhia tão jovem.
O breve encontro foi a oportunidade de lhe comunicar um fato que me deixara perplexo, ocorrido no início daquela semana.
Ao me apresentar, contei ao governador que sou médico, que fiz graduação na USP, pesquisas em Harvard, residência em dermatologia no hospital Johns Hopkins (EUA) e especialização em cirurgia dermatológica em Paris. Contei também que há cinco dias fora contratado como médico concursado do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Ele sorriu e me deu parabéns. Ao agradecê-los, muito constrangido, informei-o de meu espanto ao descobrir que o salário-base para o médico do HC era de R$ 414 mensais para uma carga horária de 20 horas semanais.
O governador buscou me consolar dizendo que eu não ganharia só isso.
Respondi que estava ciente das gratificações e que, mesmo assim, meu salário bruto seria de R$ 1.500.
Informei-o ainda de que o custo para manter meu consultório fechado durante as horas em que estarei no HC é o triplo do valor que receberei do Estado.
Àquela altura, quando já não mais sorríamos, pedi sua opinião. O governador me aconselhou a deixar o HC, dizendo que o HC não é um bom negócio para mim.
A objetividade e o pragmatismo do conselho refletem bom senso nas finanças privadas. O seu conteúdo reflete o descaso do Estado com os médicos da rede pública de saúde e com o futuro de uma instituição cujas contribuições assistenciais e para a pesquisa e educação médica são inigualáveis em todo o território nacional.
A maioria dos médicos concursados do HC são funcionários do Estado atraídos pela fama da instituição. Eles se distinguem pela admirável formação acadêmica e excelência dentro de suas especialidades. Quase todos são profissionais humanitários, muito trabalhadores e que se dedicam aos seus pacientes de forma exemplar.
Grande parte deles detém habilidades e notório saber valorizados além das fronteiras da instituição e do país.
Quase nunca fazem greve e freqüentemente acumulam tarefas para que o hospital funcione. Muitos fazem pesquisas inovadoras, publicam artigos científicos e constantemente levam trabalho para casa. São médicos tão apaixonados pelo que fazem que não se deram conta de que poderiam entrar em um péssimo negócio. Com tantas qualidades, seria esperado que os médicos do HC fossem pelo menos remunerados adequadamente. O salário de qualquer médico deve, no mínimo, pagar o longo investimento na sua formação e nos cursos de reciclagem; deve também permitir que exerça sua profissão com dignidade e que seja modelo de saúde para os seus pacientes. A sua remuneração deve ainda compensar pela grande responsabilidade que carrega.
As associações médicas estaduais sugerem hoje um piso de R$ 7.500 para atender tais necessidades. O HC paga um quinto desse valor.
Não precisa ser economista para perceber que pagar para trabalhar não é um bom negócio. Enquanto a política de estagnação salarial no HC é péssima para os médicos, ela é desastrosa para toda a população.
Sem a vontade governamental de resgatar salários de médicos e funcionários do HC, o elenco dos que vão dançar nessa história é gigantesco, e a coreografia, tragicamente previsível.
Primeiro ato - Os prestigiados médicos que se aposentam não encontram candidatos à altura para substituí-los. Os novos médicos que ainda ingressam, quando dotados de um pouco de inteligência e bom senso, rapidamente abandonam seus cargos.
Entreato - Pacientes graves de renda média e baixa não conseguem acesso a uma das poucas filas que restavam a sua disposição. Segundo ato - Sem médicos capacitados, o atendimento se torna precário, e a pesquisa, de baixa qualidade; não se produzem novos conhecimentos nem se consegue transmiti-los aos alunos da USP. Os prodigiosos passos alcançados pelo HC e pela Faculdade de Medicina da USP em tantas décadas já não mais impressionam nem beneficiam aqueles sentados em camarotes. As cortinas se fecham.
O conselho do governador ilumina a cena.

DAVI DE LACERDA, 36, graduado em medicina pela USP e residência em dermatologia pelo Johns Hopkins Hospital (Baltimore, EUA), é dermatologista em consultório e no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.



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