São Paulo, sábado, 18 de dezembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Lei do Aborto deve ser revista?

NÃO

Focas sim, crianças não

AMAURY CASTANHO

Os que protegem os animais podem ficar tranqüilos. Hoje, em todo o Ocidente "cristão", as focas, os leões-marinhos, as tartarugas e os micos dourados estão superprotegidos e interessam mais a muitos homens e mulheres do que as crianças. O que se faz para salvar um panda na China impressiona. Peixes, aves e quadrúpedes merecem, atualmente, o empenho de muitos biólogos e gente inteligente na Europa e entre nós.
Meses atrás li uma reportagem dedicada ao "amor humano" e ao "amor canino". Ao fim do texto, a conclusão: felizes são os cães, gatos e outros bichos. Infelizes são as crianças, em especial as que estão para nascer. Certa senhora da alta classe tinha dois filhos e 11 cães (sim, senhor!). Os cuidados de cada um deles custavam, por mês, pouco menos que a criação de cada filho!
Essas reflexões me vieram à mente nestes dias, quando a Folha destacava notícias como esta: "Governo Lula põe Lei do Aborto em discussão". Na mesma página, ao lado, literalmente: "Não me arrependo nem um pouco disso" -declaração de Maria, nome fictício, de 28 anos. Alegando "não ter estrutura financeira e psicológica para colocar um filho no mundo", declarou que, se estivesse grávida, "faria um aborto de qualquer maneira". Mesmo sabendo que o aborto, em qualquer caso, ainda é tido como crime entre nós, segundo a Constituição e o Código Penal -despenalizado, mas crime, nos casos de gravidez resultante de estupro e quando a gestante vier a correr risco de morte.
As estatísticas espantam, informando que anualmente são praticados no Brasil pelo menos 1,5 milhão de abortos voluntários, intencionais e provocados. Deixa-me estarrecido ler que "a fome mata uma criança a cada cinco segundos" no mundo, conforme relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). Ousaria dizer que os investimentos feitos em países abortistas como Inglaterra, França, Alemanha, Canadá, EUA, Brasil etc. são maiores que o aplicado no Fome Zero! Dá vontade de chorar e emociona ver fotografias de recém-nascidos e crianças magérrimas, nos braços de suas desnutridas mães da África Central. Saber que há mães desnaturadas jogando seus filhos, apenas nascidos, em latões de lixo e aterros sanitários.
Agora, a última do governo Lula. Com certeza devidamente autorizado, com o respaldo do Ministério da Saúde, foi constituído um "grupo de trabalho" em nível federal, com o fim de rever a questão do aborto, com a previsível finalidade de ampliar os casos em que a lei os permitiria. A ocasião próxima para o início dos trabalhos da ilustre comissão foi o caso dos anencéfalos.
Para inglês ver, a secretária especial de Políticas para as Mulheres, Nilcéa Freire, afirmou caber ao governo "propiciar uma discussão na sociedade sobre o tema". Até que o debate sempre é oportuno. Em 1940, em pleno Estado Novo, foram despenalizados os abortos nos dois casos lembrados acima. Ao que consta, a sociedade foi colhida de surpresa. Não houve debate e a pena de morte contra os indefesos nascituros veio de cima, sem consulta às bases, sem nenhum plebiscito ou referendo.
A "liberal" ministra Nilcéa e a coordenadora da área técnica da Saúde da Mulher, também do esperançoso governo Lula, ambas feministas, já adiantaram que são favoráveis à ampliação dos casos de permissão do aborto. Referem-se aos anencéfalos, fetos parcial ou totalmente sem cérebro, mas vivos. Mais adiante, porém, algum ministro do STF ou da Saúde, ou seja lá do que for, defenderá o direito absoluto da mulher ao próprio corpo (e dos bebês em seu ventre) nos casos de síndrome de Down e outras anomalias fetais, lamentavelmente mais freqüentes do que se pensa.
É oportuno deixar claro que a Igreja Católica, seus pastores e fiéis conscientes somos decididamente contrários ao aborto em qualquer caso. E não venham dizer que defendemos a vida dos nascituros somente por razões religiosas, lembrados do "não matarás". É o direito natural que fundamenta o respeito à vida de toda e qualquer pessoa inocente, como o primeiro e mais fundamental dos direitos humanos. Que outro direito poderá ser afirmado e respeitado sem o direito de nascer? É uma questão de valores e de direito natural que se sobrepõem a qualquer direito positivo. A vida é um valor sagrado! A morte, a esterilização do homem ou da mulher, o aborto em qualquer caso, o suicídio, o assassinato e outros costumes de nosso Ocidente "ex-cristão" são "extermínio"; assassinatos cruéis e covardes, como reafirmou a presidência da nossa CNBB.
Para que a discussão na sociedade se, de antemão e publicamente, a ilustre ministra Nilcéa já se disse favorável a novos casos de despenalização do aborto voluntário? Somos um povo sábio e esclarecido ou "neobobos" e imbecis?


Dom Amaury Castanho, 77, jornalista, licenciado em filosofia e teologia pela Pontifícia Universidade Católica Gregoriana de Roma, é bispo emérito de Jundiaí (SP).


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