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TENDÊNCIAS/DEBATES
A Lei do Aborto deve ser revista?
SIM
Ilegalidade que rouba a vida das mulheres
FLAVIA PIOVESAN e SILVIA PIMENTEL
A proposta de revisão da legislação penal a respeito do aborto insere-se em um contexto singular, marcado pelo amplo debate público no âmbito dos Poderes Judiciário, Executivo e
Legislativo, fomentado pelo ativo protagonismo da sociedade civil.
No Judiciário, o tema tem recebido
destacada atenção, em virtude de julgamento pelo STF da antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia
fetal. No Executivo, a revisão da legislação do aborto consta do Plano Nacional
de Políticas para as Mulheres.
Recentemente a ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres, e a ministra Matilde
Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial,
enfatizaram a importância do debate
público a respeito do tema, bem como
assumiram expressamente suas convicções pessoais acerca do reconhecimento da autodeterminação das mulheres
em relação aos seus direitos reprodutivos. No mesmo sentido, o ministro da
Saúde, Humberto Costa, defendeu tratamento digno à mulher após o aborto.
No Legislativo destaca-se a existência
de 33 propostas de alteração da legislação sobre o aborto (CFEMEA, 12/2004).
Nesse cenário, indaga-se qual tem sido o impacto e a efetividade da legislação punitiva do aborto nestes últimos
60 anos. Em que medida o Código Penal
de 1940 tem sido capaz de refletir as necessidades e as reivindicações das mulheres, no plano da sexualidade e da reprodução? A legislação penal estaria em
consonância com a Constituição brasileira de 1988 e com os parâmetros internacionais contemporâneos acerca do
tema, respeitando as mulheres enquanto cidadãs? "Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: pena de detenção de 1 a 3 anos."
"Provocar o aborto com o consentimento da gestante: pena de reclusão de
1 a 4 anos." Desta forma o, Código Penal
criminaliza o aborto provocado pela
gestante ou por terceiro com seu consentimento. No Brasil, o aborto só não é
punido se não houver outro meio de
salvar a vida da gestante ou se a gravidez
resultar de estupro.
Defendemos a urgente e necessária revisão dessa legislação punitiva, com base em argumentos de ordem jurídica,
fática e política. No plano jurídico, a criminalização do aborto viola os direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres, reconhecidos como direitos humanos nas
conferências internacionais do Cairo e
Copenhague, em 1994, e de Pequim, em
1995. Tais direitos contemplam duas
vertentes diversas e complementares.
De um lado, apontam o campo da liberdade e da autodeterminação individual,
o que compreende o livre exercício da
sexualidade e da reprodução humana,
sem discriminação, coerção ou violência. Trata-se do direito de autonomia
individual, privacidade, intimidade e liberdade, em que se clama pela não-interferência do Estado. Do outro lado, o
efetivo exercício desses direitos demanda a interferência do Estado através de
leis e políticas públicas que assegurem a
saúde sexual e reprodutiva.
Importa realçar que os comitês da
ONU sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc) e sobre a Eliminação da Discriminação contra a
Mulher (Cedaw) recomendaram ao Estado brasileiro, em 2003, a adoção de
medidas que garantam o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos.
Ambos enfatizaram a necessidade da
revisão da legislação punitiva com relação ao aborto.
Entendemos que cabe à mulher, na
qualidade de pleno sujeito de direitos, a
partir de suas próprias convicções morais e religiosas, a liberdade de escolha
quanto à interrupção da gravidez indesejada, ponderando ela própria os valores envolvidos.
Estima-se que o país tenha cerca de
dois abortos clandestinos por minuto e
que entre 750 mil e 1,4 milhão deles tenham sido realizados apenas em 2000.
O aborto figura como a quarta causa de
morte materna no Brasil. A legislação
repressiva e punitiva tem impacto, sobretudo, na vida de mulheres adolescentes, jovens e de baixa renda, que ora
são obrigadas a prosseguir na gravidez
indesejada, ora se sujeitam à prática de
aborto em condições de absoluta insegurança. Eis o paradoxo: aqueles que,
ao defender a absoluta inviolabilidade
do direito à vida, sendo contrários à
descriminalização do aborto, acabam
por contribuir para a morte seletiva de
mulheres.
Por fim, o argumento de ordem política, eis que o Estado laico é garantia essencial para o exercício dos direitos humanos, na busca de uma sociedade livre, diversa e plural, não cabendo ao seu
ordenamento jurídico a imposição de
sanções penais ao conjunto da sociedade por violações a dogmas e a preceitos
religiosos. Todas as religiões convergem
no respeito ao valor da vida. Divergem,
contudo, na concepção e no sentido da
própria vida e no modo como o valor
intrínseco da vida há de ser desenvolvido e potencializado. Por isso, a ordem
jurídica em um Estado democrático de
Direito deve se manter laica e secular,
não podendo se converter na voz exclusiva da moral de nenhuma religião.
Apesar do avanço global dos fundamentalismos religiosos, que têm caracterizado os conflitos mundiais contemporâneos, estamos certas de que o Estado brasileiro -nas esferas do Judiciário, Legislativo e Executivo- louvará o
seu papel histórico, assegurando vida,
saúde, respeito e dignidade às mulheres.
Flavia Piovesan, 36, professora de direito constitucional e direitos humanos na PUC-SP, é procuradora do Estado e membro do Cladem (Comitê Latino-Americano e do Caribe para os Direitos
da Mulher). Silvia Pimentel, 64, professora de
filosofia do direito da PUC-SP, é membro do Cladem e do Comitê Sobre a Eliminação da Discriminação Contra a Mulher, da ONU.
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