São Paulo, sábado, 18 de dezembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Lei do Aborto deve ser revista?

SIM

Ilegalidade que rouba a vida das mulheres

FLAVIA PIOVESAN e SILVIA PIMENTEL

A proposta de revisão da legislação penal a respeito do aborto insere-se em um contexto singular, marcado pelo amplo debate público no âmbito dos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo, fomentado pelo ativo protagonismo da sociedade civil.
No Judiciário, o tema tem recebido destacada atenção, em virtude de julgamento pelo STF da antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia fetal. No Executivo, a revisão da legislação do aborto consta do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.
Recentemente a ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, e a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, enfatizaram a importância do debate público a respeito do tema, bem como assumiram expressamente suas convicções pessoais acerca do reconhecimento da autodeterminação das mulheres em relação aos seus direitos reprodutivos. No mesmo sentido, o ministro da Saúde, Humberto Costa, defendeu tratamento digno à mulher após o aborto.
No Legislativo destaca-se a existência de 33 propostas de alteração da legislação sobre o aborto (CFEMEA, 12/2004).
Nesse cenário, indaga-se qual tem sido o impacto e a efetividade da legislação punitiva do aborto nestes últimos 60 anos. Em que medida o Código Penal de 1940 tem sido capaz de refletir as necessidades e as reivindicações das mulheres, no plano da sexualidade e da reprodução? A legislação penal estaria em consonância com a Constituição brasileira de 1988 e com os parâmetros internacionais contemporâneos acerca do tema, respeitando as mulheres enquanto cidadãs? "Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: pena de detenção de 1 a 3 anos." "Provocar o aborto com o consentimento da gestante: pena de reclusão de 1 a 4 anos." Desta forma o, Código Penal criminaliza o aborto provocado pela gestante ou por terceiro com seu consentimento. No Brasil, o aborto só não é punido se não houver outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resultar de estupro.
Defendemos a urgente e necessária revisão dessa legislação punitiva, com base em argumentos de ordem jurídica, fática e política. No plano jurídico, a criminalização do aborto viola os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, reconhecidos como direitos humanos nas conferências internacionais do Cairo e Copenhague, em 1994, e de Pequim, em 1995. Tais direitos contemplam duas vertentes diversas e complementares. De um lado, apontam o campo da liberdade e da autodeterminação individual, o que compreende o livre exercício da sexualidade e da reprodução humana, sem discriminação, coerção ou violência. Trata-se do direito de autonomia individual, privacidade, intimidade e liberdade, em que se clama pela não-interferência do Estado. Do outro lado, o efetivo exercício desses direitos demanda a interferência do Estado através de leis e políticas públicas que assegurem a saúde sexual e reprodutiva.
Importa realçar que os comitês da ONU sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc) e sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (Cedaw) recomendaram ao Estado brasileiro, em 2003, a adoção de medidas que garantam o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. Ambos enfatizaram a necessidade da revisão da legislação punitiva com relação ao aborto.
Entendemos que cabe à mulher, na qualidade de pleno sujeito de direitos, a partir de suas próprias convicções morais e religiosas, a liberdade de escolha quanto à interrupção da gravidez indesejada, ponderando ela própria os valores envolvidos.
Estima-se que o país tenha cerca de dois abortos clandestinos por minuto e que entre 750 mil e 1,4 milhão deles tenham sido realizados apenas em 2000. O aborto figura como a quarta causa de morte materna no Brasil. A legislação repressiva e punitiva tem impacto, sobretudo, na vida de mulheres adolescentes, jovens e de baixa renda, que ora são obrigadas a prosseguir na gravidez indesejada, ora se sujeitam à prática de aborto em condições de absoluta insegurança. Eis o paradoxo: aqueles que, ao defender a absoluta inviolabilidade do direito à vida, sendo contrários à descriminalização do aborto, acabam por contribuir para a morte seletiva de mulheres.
Por fim, o argumento de ordem política, eis que o Estado laico é garantia essencial para o exercício dos direitos humanos, na busca de uma sociedade livre, diversa e plural, não cabendo ao seu ordenamento jurídico a imposição de sanções penais ao conjunto da sociedade por violações a dogmas e a preceitos religiosos. Todas as religiões convergem no respeito ao valor da vida. Divergem, contudo, na concepção e no sentido da própria vida e no modo como o valor intrínseco da vida há de ser desenvolvido e potencializado. Por isso, a ordem jurídica em um Estado democrático de Direito deve se manter laica e secular, não podendo se converter na voz exclusiva da moral de nenhuma religião.
Apesar do avanço global dos fundamentalismos religiosos, que têm caracterizado os conflitos mundiais contemporâneos, estamos certas de que o Estado brasileiro -nas esferas do Judiciário, Legislativo e Executivo- louvará o seu papel histórico, assegurando vida, saúde, respeito e dignidade às mulheres.


Flavia Piovesan, 36, professora de direito constitucional e direitos humanos na PUC-SP, é procuradora do Estado e membro do Cladem (Comitê Latino-Americano e do Caribe para os Direitos da Mulher). Silvia Pimentel, 64, professora de filosofia do direito da PUC-SP, é membro do Cladem e do Comitê Sobre a Eliminação da Discriminação Contra a Mulher, da ONU.


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