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TENDÊNCIAS/DEBATES
Os acidentes na engenharia brasileira
ALBERTO SAYÃO
Não há obra 100% segura. A questão é: qual o nível de risco aceitável? Quanto a sociedade aceita arriscar para economizar recursos?
NAS DUAS primeiras semanas
de 2007, o país vivenciou acidentes com conseqüências
trágicas que marcam a engenharia
nacional: escorregamentos na região
serrana do Rio de Janeiro, ruptura de
barragem de rejeitos em Minas Gerais e desabamento na linha 4 do metrô de São Paulo.
A chuva tem sido apontada como a
causa dessas tragédias por administradores, políticos e outros entrevistados. Rapidamente, especialistas
disseram que não é tão simples assim.
As causas são mais complexas e precisam ser discutidas abertamente.
Algumas questões têm sido recorrentes. A capacidade dos engenheiros
brasileiros para enfrentar as chuvas,
tão usuais nesta época, tem sido questionada. A boa engenharia considera
sempre os efeitos da chuva, da água
ou da saturação dos terrenos. Obras
próximas a um rio ou sob ele são perfeitamente possíveis. Exigem maiores cuidados e conhecimentos, mas a
chuva não pode ser a culpada.
Outra questão freqüente: as obras
atuais são seguras? Não há obra 100%
segura. Obras de engenharia sempre
trazem algum risco. Porém, para reduzir o grau de risco, o custo da obra
aumenta. Como, aliás, ocorre na medicina ou na aviação, por exemplo. A
questão, então, é: qual o nível de risco
aceitável? Quanto a sociedade aceita
arriscar para economizar recursos?
Ninguém quer voar em um avião
velho ou ser operado por um médico
qualquer. Mas, nas obras de engenharia, já não é usual gastar o necessário
para minimizar os riscos. Ao contrário, faz-se economia em investigações, ensaios, projetos, consultoria,
instrumentação e fiscalização. Tudo
se resume ao melhor balanceamento
entre riscos e custos.
Outra pergunta usual: os acidentes
mencionados poderiam ter sido evitados? Tecnicamente, sim. Num acidente, há duas alternativas: ou houve
falha técnica (projeto, construção, fiscalização) ou a obra foi concebida
com um nível de risco inadequado.
Outra questão: as obras de engenharia têm sido atualmente contratadas por preço "fechado", "turn key"
ou por PPPs (parcerias público-privadas). São modalidades adequadas? A
resposta é sujeita a debates. Em muitos desses contratos, o projeto, a execução, o monitoramento e a fiscalização da obra não são necessariamente
independentes, pois podem estar ligados a um mesmo grupo. Apesar de
terem vantagens de prazo e custo, essas modalidades reduzem, em tese, as
atividades de verificação, questionamento e reparo de eventuais falhas.
A prática das licitações vem também mudando. Muitas estipulam um
valor máximo ou são decididas pelo
menor preço. Mas nem sempre o
"menor preço" significa o "melhor
preço", pois pode resultar em redução
da qualidade e aumento do risco.
Infelizmente, isso tem trazido uma
desvalorização gradual da engenharia
no país. O resultado é a extinção de laboratórios técnicos, o desmembramento das empresas de projeto, a fragilização da consultoria, o desprezo
pelas universidades e o desmonte das
equipes técnicas dos órgãos governamentais no Brasil. Projeto, consultoria e investigação têm custos irrelevantes quando comparados com o
custo total das obras e são decisivos
para a otimização dos investimentos.
Por outro lado, as seguradoras vêm
se tornando cada vez mais importantes. Um dos principais pontos de discussão passou a ser o valor do seguro.
Especialistas na avaliação dos riscos
envolvidos em uma obra são mais valorizados do que engenheiros.
Os recentes acidentes têm alguma
ligação com tudo isso? A barragem
que enlameou Minas e Rio pode ser
um exemplo. A barragem estava
pronta: teriam sido necessárias mais
inspeções, mais investigações, mais
consultoria, mais instrumentação para evitar a catástrofe ambiental?
E no metrô, que estava em estágio
avançado da construção, algo poderia
ter sido feito para evitar a tragédia?
E no caso dos escorregamentos recentes nas encostas da região serrana
do Rio, os administradores locais foram previdentes? Um encontro técnico, em final de novembro, foi realizado pela ABMS em Friburgo, e vários problemas e soluções para as encostas da região foram debatidos durante dois dias. Todos os prefeitos e
secretários de obra da região foram
convidados com antecedência. No entanto, somente o secretário do município de Cantagalo compareceu e participou. É mais fácil culpar a chuva...
Esses problemas têm sido discutidos em congressos entre os especialistas geotécnicos do país. Mas a responsabilidade passa, também, pelo
poder público, que precisa atuar mais
ativamente para o aperfeiçoamento
das licitações e contratações. E para o
resgate da valorização dos profissionais da nossa engenharia, a qual já foi
motivo de orgulho e ainda é reconhecida e exaltada no exterior.
O Brasil tem capacitação técnica e
tecnológica que em nada fica a dever a
nenhum país. Isso não significa que
acidentes deixarão de ocorrer. Significa que, dadas as devidas condições, a
engenharia pode e deve minimizar a
freqüência e as conseqüências desses
acidentes. A sociedade aguarda respostas, explicações e ações que virão
com os laudos técnicos sobre os acidentes. Mas não pode ficar temendo a
chuva ou os detalhes da geologia.
ALBERTO SAYÃO, engenheiro, doutor em engenharia civil pela University of British Columbia (Canadá), é professor da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro) e presidente da ABMS (Associação Brasileira de
Mecânica dos Solos e Engenharia Geotécnica).
abms@ipt.br
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