São Paulo, quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OTAVIO FRIAS FILHO

No país dos aiatolás

As eleições que acontecem amanhã no Irã podem parecer um fato remoto e impalpável -ainda mais nestes dias em que tantos brasileiros descobriram que o governo Lula, até do ponto de vista da moralidade administrativa, não é diferente dos demais. Mas o que está acontecendo no país dos aiatolás deverá ter implicações muito mais amplas do que os trambiques no país dos waldomiros.
Uma das nações menos subdesenvolvidas do mundo muçulmano, uma das culturas mais antigas da humanidade e um dos cinco maiores produtores de petróleo do mundo, o Irã é uma espécie de centro de gravidade do islã. Sua posição estratégica ganhou relevo depois que o governo Bush "ensanduichou" o país entre o Afeganistão liberado e o Iraque ocupado.
Em 1979, uma revolução fundamentalista derrubou a ditadura modernizante e pró-ocidental do xá Reza Pahlevi. A esquerda internacional comemorou, mas logo se decepcionaria com os resultados, pois a ditadura dos aiatolás mostrou-se regressiva e ultraconservadora. O Irã se tornou o primeiro país islâmico importante a adotar o fundamentalismo religioso como política de Estado.
Como toda revolução, a dos aiatolás sofreu desgaste com o tempo. A guerra para repelir a invasão iraquiana (1980-88) e o contencioso com o Ocidente cobraram um preço alto ao país. Em 1997, a insatisfação latente assumiu forma política com a eleição popular do reformista Mohammad Khatami para presidente. Ele fora o patrono do novo cinema iraniano e o tradutor do livro "A Democracia na América", de Tocqueville, para o persa.
No ano de 2000, os fundamentalistas perderam o controle do Parlamento. Desde então, o país está paralisado por duas estruturas de poder em confronto. De um lado, o Parlamento dominado por "liberais". De outro, o aiatolá Khamenei, líder "espiritual" da Revolução e sucessor do famoso aiatolá Khomeini, chefe do poder religioso, que prevalece sobre o civil.
O presidente Khatami tentou uma política de reforma gradual, equilibrando-se entre as duas estruturas paralelas, estratégia um pouco semelhante à de Gorbatchov na extinta União Soviética e à da dupla Geisel-Golbery no último período da ditadura militar brasileira. Essa política, porém, fracassou. Khatami, que deixa o cargo no ano que vem, após ter sido reeleito em 2001, é um fósforo riscado.
O Conselho de Guardiães, órgão tutelado pelos aiatolás, proibiu (e tem poderes para tanto) a candidatura de um terço dos reformistas nas eleições de amanhã. O voto é facultativo, o comparecimento será baixo. Tudo indica que os fundamentalistas retomarão o controle do Parlamento, deixando aos "liberais" a via da política extraparlamentar.
O principal recurso do Ocidente contra os fundamentalistas não são as armas de Bush, mas a sedução do capitalismo tecnológico, a cultura do shopping center. Assim como o movimento democrático esmagado pelo PC chinês em 1989, o reformismo iraniano é impulsionado pela população jovem e seu anseio de liberdade pessoal. Essa é uma "revolução" que pode ser adiada, mas não detida. Sua força subterrânea, dissolvente, já derrubou o totalitarismo socialista e fará o mesmo, um dia, com o islâmico.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: O filme e o livro
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.