São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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DESGASTE QUE NÃO CESSA

Graças a uma providencial liminar do STF, o governo Lula pôde comemorar uma vitória nesta quinta-feira: interrompeu-se, para alívio petista, o depoimento que o caseiro Francenildo dos Santos Costa ia prestando à CPI dos Bingos. Vitória jurídica, sem dúvida. Do ponto de vista moral, entretanto, o resultado é uma derrota inquestionável.
Qualquer que fosse a consistência daquele testemunho, nada poderia incriminar mais o governo que o empenho em suspendê-lo. Mobilizou-se a mais alta corte do país, e os mais respeitáveis princípios constitucionais se invocaram, para preservar o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, de um agudo desgaste.
Num desdobramento dos mais nebulosos, noticiou-se que o caseiro detinha, em sua conta bancária, quantias incompatíveis com a sua remuneração mensal. Cabe perguntar -num país em que o sigilo bancário de personalidades como Paulo Okamotto adquire conotações de respeito quase místico- de que modo as informações sobre a vida financeira de Francenildo puderam ser devassadas com tanta sem-cerimônia.
De todo modo, é deprimente, para não dizer absurdo, que a sustentação ética e política de um ministro da Fazenda passe a depender não dos números do PIB ou de um passado de lisura administrativa, e sim da análise do extrato bancário de um caseiro de mansão suspeita.
Já forçado, em episódio recente, a corrigir-se de modo constrangedor, o ministro Palocci de qualquer modo não tem como recorrer mais uma vez à célebre desculpa da "imprecisão terminológica" se quiser convencer a opinião pública de que nunca freqüentou a casa onde se reuniam, para seus diversos ócios e negócios, os membros mais operosos da chamada "república de Ribeirão Preto".
Não se trata, aqui, de questionar a vida íntima do ministro; o direito à privacidade, embora nunca absoluto quando se trata de uma figura pública, merece ser levado em consideração. Muito menos seria o caso de conceder poderes absolutos e extraconstitucionais a uma CPI. É saudável que Judiciário, Executivo e Legislativo se equilibrem e se vigiem mutuamente, conforme a clássica tradição republicana.
A desmoralização do governo Lula e de seus representantes no Legislativo faz-se entretanto patente quando, mais uma vez, argumentos de ordem constitucional não disfarçam o simples objetivo de abafar as investigações em curso. No âmbito da CPI, votara-se favoravelmente a que o caseiro fosse ouvido; o teor de suas declarações, de resto, já era de conhecimento público. Mesmo assim, os interesses governistas foram bater às portas do Supremo com indisfarçável sofreguidão.
Vão-se tornando freqüentes os episódios em que o Judiciário não mais atua simplesmente como um regulador da vida institucional, mas é chamado a intervir pontualmente, de forma intrusiva e mesmo casuística, no varejo da disputa política.
Em outros períodos da história brasileira, foi infelizmente comum que casos de impasse entre forças partidárias resultassem em apelos histéricos à intervenção militar. Num quadro em que as instituições da sociedade civil careciam de densidade e de organização própria, as tensões do mundo político passavam sem filtragem ao campo da turbulência armada.
Vivemos outro estágio de cultura democrática e institucional; parece ser sintoma de fragilidade do sistema político, porém, que não consiga resolver por si mesmo os seus impasses, e que o governo de um partido antes comprometido com a bandeira da ética se sinta tão à vontade para desconsiderar a opinião pública e desenvolver proezas de imaginação casuístico-jurídica na defesa de seus interesses mais inconfessáveis.


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