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HÉLIO SCHWARTSMAN
Arde?
Desde ontem o Merthiolate, um
clássico da gaveta de remédios,
está com a comercialização proibida
em todo o Brasil. Se eu fosse supersticioso, atribuiria a proscrição ao fato
de centenas de milhões de crianças em
todo o mundo já terem amaldiçoado
esse líquido de cheiro penetrante. Como não acredito em bruxas, prefiro
acreditar que a tintura de mertiolato,
ou timerosal, foi banida pela resolução 528 do doutor Gonzalo Vecina
Neto, presidente da Anvisa, a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária.
A medida faz mais do que apenas
vingar as criancinhas. O timerosal, a
exemplo de outras moléculas orgânicas de mercúrio, como o Mercurocromo, é bom para fazer casquinha, ou
seja, tem, em machucados, menos
efeito que água e sabão, só que com a
desvantagem de arder bem mais.
Na verdade, os anti-sépticos à base
de mercúrio já foram eficientes no
passado, mas bactérias acabaram por
desenvolver resistência a esses preparados. Os hospitais já os substituíram
por outros produtos há pelo menos
dez anos. Há razões para tal. O mercúrio, mesmo em compostos orgânicos,
permanece tóxico. Produz de alergias
leves a quadros de envenenamento.
Grupos mais paranóicos já procuraram demonstrar que formas raras de
autismo em crianças são provocadas
pelo timerosal presente nas vacinas.
É isso mesmo, os saudosistas podem
ficar tranquilos: o Merthiolate continuará existindo nas vacinas, nas quais
é utilizado como agente preservativo.
E talvez não apenas nas vacinas. A
Eli Lilly, o laboratório que produz o
Merthiolate, já anunciou que a marca
continuará existindo com uma outra
fórmula, que não contém mercúrio.
Aqui a questão deixa de ser da alçada da saúde pública para tornar-se um
sério problema ontológico. Ora, o nome "Merthiolate", que em bom português é "mertiolato" mesmo, pode ser
decomposto em "mer", "tiol" e no sufixo "ato", em que "mer" é uma abreviação de mercúrio e "tiol" é o nome
genérico para o grupo químico -SH,
também chamado de "mercaptan"
("mercurium captans"), que se caracteriza, não apenas pelo odor desagradável, mas justamente por ser capaz
de captar mercúrio. Numa tradução
livre, "mertiolato" daria algo como
"mercúrio captado pelo grupo que
capta mercúrio".
Resta saber se um preparado sem
mercúrio, como agora exige a Anvisa,
pode ser vendido sob o nome tão mercurial de "mertiolato".
Desde criancinha -e principalmente então- apóio o banimento da
tintura de timerosal, mas minha alma
metafísica se revolta com a possibilidade de que o Merthiolate siga sendo
vendido sem mercúrio. Mesmo quem
não partilha de minhas preocupações
ontológicas vai concordar que há uma
infração aos direitos do consumidor.
Seria como vender feijoada sem feijão.
Vale lembrar, a esse propósito, que a
Coca-Cola, em respeito à ontologia e
ao consumidor, até hoje utiliza folhas
de coca na receita de seu produto.
Estamos aqui diante de uma questão
que guarda semelhança com o célebre
problema do nome da rosa, que tanto
ocupou os filósofos medievais. Quem
o propôs, em sua fórmula mais poética, foi Abelardo (1079-1142): o nome
da rosa, se não houvesse mais rosas,
ainda significaria alguma coisa em
nossas mentes? Pode haver um Merthiolate sem mercúrio? Ele arde?
Hélio Schwartsman é editorialista da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo
de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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