São Paulo, quinta-feira, 19 de abril de 2001

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HÉLIO SCHWARTSMAN

Arde?

Desde ontem o Merthiolate, um clássico da gaveta de remédios, está com a comercialização proibida em todo o Brasil. Se eu fosse supersticioso, atribuiria a proscrição ao fato de centenas de milhões de crianças em todo o mundo já terem amaldiçoado esse líquido de cheiro penetrante. Como não acredito em bruxas, prefiro acreditar que a tintura de mertiolato, ou timerosal, foi banida pela resolução 528 do doutor Gonzalo Vecina Neto, presidente da Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
A medida faz mais do que apenas vingar as criancinhas. O timerosal, a exemplo de outras moléculas orgânicas de mercúrio, como o Mercurocromo, é bom para fazer casquinha, ou seja, tem, em machucados, menos efeito que água e sabão, só que com a desvantagem de arder bem mais.
Na verdade, os anti-sépticos à base de mercúrio já foram eficientes no passado, mas bactérias acabaram por desenvolver resistência a esses preparados. Os hospitais já os substituíram por outros produtos há pelo menos dez anos. Há razões para tal. O mercúrio, mesmo em compostos orgânicos, permanece tóxico. Produz de alergias leves a quadros de envenenamento. Grupos mais paranóicos já procuraram demonstrar que formas raras de autismo em crianças são provocadas pelo timerosal presente nas vacinas.
É isso mesmo, os saudosistas podem ficar tranquilos: o Merthiolate continuará existindo nas vacinas, nas quais é utilizado como agente preservativo.
E talvez não apenas nas vacinas. A Eli Lilly, o laboratório que produz o Merthiolate, já anunciou que a marca continuará existindo com uma outra fórmula, que não contém mercúrio.
Aqui a questão deixa de ser da alçada da saúde pública para tornar-se um sério problema ontológico. Ora, o nome "Merthiolate", que em bom português é "mertiolato" mesmo, pode ser decomposto em "mer", "tiol" e no sufixo "ato", em que "mer" é uma abreviação de mercúrio e "tiol" é o nome genérico para o grupo químico -SH, também chamado de "mercaptan" ("mercurium captans"), que se caracteriza, não apenas pelo odor desagradável, mas justamente por ser capaz de captar mercúrio. Numa tradução livre, "mertiolato" daria algo como "mercúrio captado pelo grupo que capta mercúrio".
Resta saber se um preparado sem mercúrio, como agora exige a Anvisa, pode ser vendido sob o nome tão mercurial de "mertiolato".
Desde criancinha -e principalmente então- apóio o banimento da tintura de timerosal, mas minha alma metafísica se revolta com a possibilidade de que o Merthiolate siga sendo vendido sem mercúrio. Mesmo quem não partilha de minhas preocupações ontológicas vai concordar que há uma infração aos direitos do consumidor. Seria como vender feijoada sem feijão.
Vale lembrar, a esse propósito, que a Coca-Cola, em respeito à ontologia e ao consumidor, até hoje utiliza folhas de coca na receita de seu produto.
Estamos aqui diante de uma questão que guarda semelhança com o célebre problema do nome da rosa, que tanto ocupou os filósofos medievais. Quem o propôs, em sua fórmula mais poética, foi Abelardo (1079-1142): o nome da rosa, se não houvesse mais rosas, ainda significaria alguma coisa em nossas mentes? Pode haver um Merthiolate sem mercúrio? Ele arde?


Hélio Schwartsman é editorialista da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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