São Paulo, quinta-feira, 19 de abril de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O alegado expurgo no Itamaraty

CELSO LAFER

Em editorial do dia 13 de abril, a Folha afirmou ter o "comando do serviço diplomático brasileiro" dado "curso a uma depuração ideológica ao expelir da direção do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães".
Vivêssemos em outra época, não-democrática, tanto o ato administrativo em questão -isso é, a exoneração (e não a demissão) de um funcionário de cargo de confiança e de direção- quanto a crítica apresentada pelo referido editorial poderiam passar sem explicação ou resposta.
Minha convicção pessoal, porém, de que, em um sistema democrático, os atos públicos devem ser transparentes leva-me a tratar, neste artigo, da decisão administrativa tomada e, mais uma vez, da questão das negociações da Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
Em meu discurso de posse, salientei a importância que atribuo ao permanente diálogo, em um governo democrático, do Itamaraty com a sociedade. A opinião pública deve constantemente ser ouvida como elemento indispensável para a sustentabilidade da política externa. Não preciso ser convencido dessa necessidade de diálogo em uma sociedade pluralista como a nossa. Minha vida e meus escritos são testemunhas dessa convicção.
Como qualquer chancelaria séria, o Itamaraty deve buscar defender os interesses nacionais de forma coerente e convincente junto a seus interlocutores. Por estarem investidos da representação do país para a negociação de acordos e a defesa dos interesses nacionais, os funcionários da carreira diplomática estão sujeitos a determinadas normas de conduta profissional e pessoal, como em todos os ministérios do Exterior.
Se um diplomata brasileiro, ainda que alegando estar expressando opiniões pessoais, manifestar de maneira pública a sua oposição à política exterior, causará descrédito do país junto a nossos interlocutores no que toca o tema em negociação. Ele poderia afetar os interesses nacionais.
A diplomacia é feita de atos que são, em grande medida, declarações sobre os temas que formam a agenda exterior do país. Na política externa, falar é agir. Montar uma estratégia de condução da política externa em um determinado tema envolve a capacidade de planejar, organizar e dosar as manifestações públicas dos que ocupam posições-chaves na diplomacia.
O êxito ou o fracasso de uma estratégia pode ser determinado, às vezes, por uma afirmação desmedida, por declarações públicas inconvenientes, por uma precipitação ou por uma demora excessiva na manifestação de certas posições. Não faltam exemplos na história.
Dos diplomatas, espera-se que subordinem as suas manifestações públicas sobre temas de política externa às circunstâncias impostas pela condução desta, muito especialmente quando eles tratam de assuntos que se encontram em negociação. Isso não significa que os diplomatas percam o direito de se manifestar como cidadãos. Esse é um direito inalienável e garantido no Brasil pela Constituição. Em cláusula pétrea.
Se considerarem que não podem deixar de manifestar publicamente, como cidadãos, uma opinião contrária a determinado aspecto da política externa do país, devem admitir que, pelo menos no tema em questão, não podem fazer parte de uma equipe coordenada.
Tomemos diretamente o caso da negociação da Alca, iniciada no final do governo do presidente Itamar Franco e cujos resultados finais somente estarão claros em 2005, quando um outro governo terá tido a oportunidade de participar ativamente do processo negociador. Assegurar esse prazo foi, aliás, a tarefa a que me dediquei, desde que assumi, em viagens e tratativas com outros países. O presidente Fernando Henrique traçou a nossa linha de atuação com relação à negociação da Alca.
Não queremos uma Alca qualquer. Se a Alca vier a propiciar um aumento de nossas exportações pela eliminação de barreiras que hoje as impedem ou dificultam e se preservar as condições de competitividade da produção nacional de bens e serviços, será positiva e bem-vinda. Caso contrário, poderemos não participar dela.
Até lá, defenderemos nossas posições e os interesses nacionais de forma firme, coerente, construtiva e com boa-fé junto aos nossos interlocutores.
Sou o primeiro a reconhecer não haver ainda um consenso no Brasil sobre a Alca. Nem poderia ser de outra forma, mesmo porque não se conhecem ainda os seus contornos precisos nem está definido o seu equilíbrio negocial. Poderíamos adotar posições protelatórias ou simplesmente nos recusar a participar do processo negociador. Se o fizéssemos, porém, estaríamos prejulgando o resultado de uma negociação que apenas começou e que, se bem conduzida, poderá ensejar importantes oportunidades de acesso a mercados. Um alheamento ou uma atitude de recusa ensejaria o risco de que outros países da região levassem adiante processos bilaterais ou plurilaterais excludentes do Brasil, que perderia, "ipso facto", mercados para os seus produtos e serviços.
A Alca é uma parte importante de um processo de negociação comercial, mas não o único em que nos encontramos engajados. Estamos simultaneamente atuando em diferentes níveis: o aprofundamento do Mercosul, a sua articulação com a Comunidade Andina, a formação de uma zona de livre comércio com a União Européia e as perspectivas de uma nova rodada global da Organização Mundial do Comércio. Em todos esses planos estão em jogo interesses concretos para o comércio exterior brasileiro, ligados à nossa inserção competitiva num mundo que não comporta isolamento autárquico. Isso obviamente exige coordenação e coerência por parte de nossos negociadores.


O Itamaraty deve buscar defender os interesses nacionais de forma coerente e convincente junto a seus interlocutores
Examinemos agora a exoneração em questão e a sua relação com a Alca. Cabe ao Itamaraty a liderança dessa delicada e complexa negociação. O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães exercia o cargo de diretor do Ipri (Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais), órgão ligado ao Ministério das Relações Exteriores e que é uma importante conexão do Itamaraty com a sociedade. Conversei com o embaixador Pinheiro Guimarães antes de tomar a decisão de exonerá-lo do cargo de confiança e de direção que ocupava. Ele me confirmou, então, as suas inequívocas convicções contrárias à Alca. Esse pensamento foi, aliás, reiterado em entrevista concedida à Folha (14/04).
Respeito os pontos de vista do embaixador. E não apenas por acreditar que, numa democracia, devemos respeitar, ouvir e considerar os pontos de vista contrários. Partilho da idéia de que a liberdade de expressão, o debate e o confronto de idéias são inerentes à sociedade democrática e participativa. Se decidi substituí-lo foi porque julguei necessário colocar à frente do Ipri alguém que pudesse dispor das necessárias isenção e objetividade para promover -e não constranger- um verdadeiro diálogo com a sociedade. Procedi assim, também, para não dar a nossos interlocutores na negociação sinais contraditórios sobre a política brasileira.
De resto, nada mais fiz do que exercer a orientação, a coordenação e a supervisão dos órgãos e entidades da área de minha competência, como determina a Constituição (art. 87, parágrafo único). O ato que pratiquei -e pelo qual assumo plena responsabilidade- é normal e rotineiro em qualquer organização pública ou privada. Isso se dá por ser comprometedora e funcionalmente imprópria a presença de alguém que, exercendo cargo de confiança, se manifeste publicamente contrário ao modo de conduzir as atividades da mesma organização. Se eu tivesse conservado o embaixador Guimarães em um cargo de confiança e direção, teria -numa analogia com o futebol- mantido no time um jogador que vem expressando uma opinião contrária não apenas à tática, mas à própria realização do jogo, por afirmar que certamente o perderia.
O que está em questão nesse caso não são, portanto, as opiniões do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que são respeitáveis. Nem está em jogo o seu direito de cidadão de expressá-las no espaço público. O que está em jogo é, única e exclusivamente, a possibilidade de o Itamaraty conduzir um processo de negociação tão complexo e tão importante como o da Alca se cada diplomata decidir se expressar publicamente sobre o assunto sem uma coordenação e sem a preocupação de ser parte de uma equipe.
A exoneração não tem, assim, relação com o seu direito de ter e expressar opiniões contrárias às minhas, às do Itamaraty ou às do governo. Não somos um país que pretende ou deseja uniformidade de opiniões na sociedade. A Constituição Federal garante-nos o direito de livre expressão e nos concede a liberdade de escolher partidos políticos e outras afiliações, religião e profissão. Cabe a nós arcar com os respectivos direitos e com as respectivas obrigações.
Em uma situação do tipo dessa que estamos analisando não há como diferenciar a representação pública da capacidade do cidadão. Uma e outra se interpenetram. Kant, cuja reflexão permeia o pensamento de Hannah Arendt e de Norberto Bobbio, no seu luminoso texto "O que é a ilustração?", faz uma distinção entre o uso público e o uso privado da razão. Disse que o uso privado é aquele que o douto pode fazer de sua razão no âmbito de cargo ou de função pública a ele confiado. Concluiu que, em muitas profissões que se exercem no interesse da comunidade -como é o caso da diplomacia, observo eu, pelos motivos que expliquei neste artigo-, são necessários mecanismos que assegurem a contenção do comportamento, a contenção necessária para não comprometer as finalidades públicas.


Celso Lafer, 59, é ministro das Relações Exteriores e professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (governo FHC) e das Relações Exteriores (governo Collor).




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