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TENDÊNCIAS/DEBATES
O alegado expurgo no Itamaraty
CELSO LAFER
Em editorial do dia 13 de abril, a
Folha afirmou ter o "comando do
serviço diplomático brasileiro" dado
"curso a uma depuração ideológica ao
expelir da direção do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães".
Vivêssemos em outra época, não-democrática, tanto o ato administrativo
em questão -isso é, a exoneração (e
não a demissão) de um funcionário de
cargo de confiança e de direção-
quanto a crítica apresentada pelo referido editorial poderiam passar sem explicação ou resposta.
Minha convicção pessoal, porém, de
que, em um sistema democrático, os
atos públicos devem ser transparentes
leva-me a tratar, neste artigo, da decisão
administrativa tomada e, mais uma vez,
da questão das negociações da Alca
(Área de Livre Comércio das Américas).
Em meu discurso de posse, salientei a
importância que atribuo ao permanente diálogo, em um governo democrático, do Itamaraty com a sociedade. A
opinião pública deve constantemente
ser ouvida como elemento indispensável para a sustentabilidade da política
externa. Não preciso ser convencido
dessa necessidade de diálogo em uma
sociedade pluralista como a nossa. Minha vida e meus escritos são testemunhas dessa convicção.
Como qualquer chancelaria séria, o
Itamaraty deve buscar defender os interesses nacionais de forma coerente e
convincente junto a seus interlocutores.
Por estarem investidos da representação do país para a negociação de acordos e a defesa dos interesses nacionais,
os funcionários da carreira diplomática
estão sujeitos a determinadas normas
de conduta profissional e pessoal, como
em todos os ministérios do Exterior.
Se um diplomata brasileiro, ainda que
alegando estar expressando opiniões
pessoais, manifestar de maneira pública
a sua oposição à política exterior, causará descrédito do país junto a nossos interlocutores no que toca o tema em negociação. Ele poderia afetar os interesses nacionais.
A diplomacia é feita de atos que são,
em grande medida, declarações sobre
os temas que formam a agenda exterior
do país. Na política externa, falar é agir.
Montar uma estratégia de condução da
política externa em um determinado tema envolve a capacidade de planejar,
organizar e dosar as manifestações públicas dos que ocupam posições-chaves
na diplomacia.
O êxito ou o fracasso de uma estratégia pode ser determinado, às vezes, por
uma afirmação desmedida, por declarações públicas inconvenientes, por uma
precipitação ou por uma demora excessiva na manifestação de certas posições.
Não faltam exemplos na história.
Dos diplomatas, espera-se que subordinem as suas manifestações públicas
sobre temas de política externa às circunstâncias impostas pela condução
desta, muito especialmente quando eles
tratam de assuntos que se encontram
em negociação. Isso não significa que os
diplomatas percam o direito de se manifestar como cidadãos. Esse é um direito inalienável e garantido no Brasil pela
Constituição. Em cláusula pétrea.
Se considerarem que não podem deixar de manifestar publicamente, como
cidadãos, uma opinião contrária a determinado aspecto da política externa
do país, devem admitir que, pelo menos
no tema em questão, não podem fazer
parte de uma equipe coordenada.
Tomemos diretamente o caso da negociação da Alca, iniciada no final do
governo do presidente Itamar Franco e
cujos resultados finais somente estarão
claros em 2005, quando um outro governo terá tido a oportunidade de participar ativamente do processo negociador. Assegurar esse prazo foi, aliás, a tarefa a que me dediquei, desde que assumi, em viagens e tratativas com outros
países. O presidente Fernando Henrique traçou a nossa linha de atuação com
relação à negociação da Alca.
Não queremos uma Alca qualquer. Se
a Alca vier a propiciar um aumento de
nossas exportações pela eliminação de
barreiras que hoje as impedem ou dificultam e se preservar as condições de
competitividade da produção nacional
de bens e serviços, será positiva e bem-vinda. Caso contrário, poderemos não
participar dela.
Até lá, defenderemos nossas posições
e os interesses nacionais de forma firme,
coerente, construtiva e com boa-fé junto aos nossos interlocutores.
Sou o primeiro a reconhecer não haver ainda um consenso no Brasil sobre a
Alca. Nem poderia ser de outra forma,
mesmo porque não se conhecem ainda
os seus contornos precisos nem está definido o seu equilíbrio negocial. Poderíamos adotar posições protelatórias ou
simplesmente nos recusar a participar
do processo negociador. Se o fizéssemos, porém, estaríamos prejulgando o
resultado de uma negociação que apenas começou e que, se bem conduzida,
poderá ensejar importantes oportunidades de acesso a mercados. Um alheamento ou uma atitude de recusa ensejaria o risco de que outros países da região
levassem adiante processos bilaterais
ou plurilaterais excludentes do Brasil,
que perderia, "ipso facto", mercados
para os seus produtos e serviços.
A Alca é uma parte importante de um
processo de negociação comercial, mas
não o único em que nos encontramos
engajados. Estamos simultaneamente
atuando em diferentes níveis: o aprofundamento do Mercosul, a sua articulação com a Comunidade Andina, a formação de uma zona de livre comércio
com a União Européia e as perspectivas
de uma nova rodada global da Organização Mundial do Comércio. Em todos
esses planos estão em jogo interesses
concretos para o comércio exterior brasileiro, ligados à nossa inserção competitiva num mundo que não comporta
isolamento autárquico. Isso obviamente exige coordenação e coerência por
parte de nossos negociadores.
O Itamaraty deve buscar
defender os interesses
nacionais de forma
coerente e convincente
junto a seus interlocutores
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Examinemos agora a exoneração em
questão e a sua relação com a Alca. Cabe
ao Itamaraty a liderança dessa delicada
e complexa negociação. O embaixador
Samuel Pinheiro Guimarães exercia o
cargo de diretor do Ipri (Instituto de
Pesquisas de Relações Internacionais),
órgão ligado ao Ministério das Relações
Exteriores e que é uma importante conexão do Itamaraty com a sociedade.
Conversei com o embaixador Pinheiro
Guimarães antes de tomar a decisão de
exonerá-lo do cargo de confiança e de
direção que ocupava. Ele me confirmou, então, as suas inequívocas convicções contrárias à Alca. Esse pensamento
foi, aliás, reiterado em entrevista concedida à Folha (14/04).
Respeito os pontos de vista do embaixador. E não apenas por acreditar que,
numa democracia, devemos respeitar,
ouvir e considerar os pontos de vista
contrários. Partilho da idéia de que a liberdade de expressão, o debate e o confronto de idéias são inerentes à sociedade democrática e participativa. Se decidi
substituí-lo foi porque julguei necessário colocar à frente do Ipri alguém que
pudesse dispor das necessárias isenção
e objetividade para promover -e não
constranger- um verdadeiro diálogo
com a sociedade. Procedi assim, também, para não dar a nossos interlocutores na negociação sinais contraditórios
sobre a política brasileira.
De resto, nada mais fiz do que exercer
a orientação, a coordenação e a supervisão dos órgãos e entidades da área de
minha competência, como determina a
Constituição (art. 87, parágrafo único).
O ato que pratiquei -e pelo qual assumo plena responsabilidade- é normal
e rotineiro em qualquer organização
pública ou privada. Isso se dá por ser
comprometedora e funcionalmente imprópria a presença de alguém que, exercendo cargo de confiança, se manifeste
publicamente contrário ao modo de
conduzir as atividades da mesma organização. Se eu tivesse conservado o embaixador Guimarães em um cargo de
confiança e direção, teria -numa analogia com o futebol- mantido no time
um jogador que vem expressando uma
opinião contrária não apenas à tática,
mas à própria realização do jogo, por
afirmar que certamente o perderia.
O que está em questão nesse caso não
são, portanto, as opiniões do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que
são respeitáveis. Nem está em jogo o seu
direito de cidadão de expressá-las no espaço público. O que está em jogo é, única e exclusivamente, a possibilidade de
o Itamaraty conduzir um processo de
negociação tão complexo e tão importante como o da Alca se cada diplomata
decidir se expressar publicamente sobre
o assunto sem uma coordenação e sem
a preocupação de ser parte de uma
equipe.
A exoneração não tem, assim, relação
com o seu direito de ter e expressar opiniões contrárias às minhas, às do Itamaraty ou às do governo. Não somos um
país que pretende ou deseja uniformidade de opiniões na sociedade. A Constituição Federal garante-nos o direito de
livre expressão e nos concede a liberdade de escolher partidos políticos e outras afiliações, religião e profissão. Cabe
a nós arcar com os respectivos direitos e
com as respectivas obrigações.
Em uma situação do tipo dessa que estamos analisando não há como diferenciar a representação pública da capacidade do cidadão. Uma e outra se interpenetram. Kant, cuja reflexão permeia o
pensamento de Hannah Arendt e de
Norberto Bobbio, no seu luminoso texto "O que é a ilustração?", faz uma distinção entre o uso público e o uso privado da razão. Disse que o uso privado é
aquele que o douto pode fazer de sua razão no âmbito de cargo ou de função
pública a ele confiado. Concluiu que,
em muitas profissões que se exercem no
interesse da comunidade -como é o
caso da diplomacia, observo eu, pelos
motivos que expliquei neste artigo-,
são necessários mecanismos que assegurem a contenção do comportamento,
a contenção necessária para não comprometer as finalidades públicas.
Celso Lafer, 59, é ministro das Relações Exteriores e professor titular da Faculdade de Direito da
USP. Foi ministro do Desenvolvimento, Indústria
e Comércio (governo FHC) e das Relações Exteriores (governo Collor).
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