São Paulo, segunda-feira, 19 de abril de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Reforma política e democracia

EMIR SADER

Uma reforma política com caráter democrático tem de ter como objetivo uma reforma radical do Estado brasileiro, e não apenas modificações no sistema eleitoral ou no sistema partidário. O Estado brasileiro foi profundamente transformado nas últimas décadas, enfraquecendo de forma acelerada nos últimos 15 anos suas funções democráticas de garantia dos direitos universais da população, tendo sido capturado e transformado pelo capital financeiro. Sua função de contrapartida do papel concentrador e excludente do mercado foi relegada, tornando-se um Estado que arrecada do setor produtivo e promove uma brutal transferência de renda para o setor especulativo nacional e estrangeiro.
O "braço direito" do Estado, conforme as definições de Pierre Bourdieu, ocupou-se de introduzir no seu interior, de forma profunda, os interesses mercantis, que hoje se traduzem sobretudo no pagamento dos juros da dívida como sua finalidade principal, em que se gasta mais do que em saúde e educação, assim como mais do que no déficit da Previdência Social. O liberalismo transformou o Estado brasileiro em um instrumento a serviço da acumulação privada, para em seguida desqualificar como anti-social o monstro que leva suas impressões digitais.
As equipes econômicas da última década e meia são a quinta-coluna dessa ocupação -uma financeirização do Estado e da sociedade no seu conjunto-, enquanto os setores que defendem os interesses públicos dentro do Estado -seu "braço esquerdo"- resistem como podem a essa invasão bárbara. Promoveu-se, como conseqüência, a mais extensa retração dos direitos elementares de cidadania, começando pelos contratos formais de trabalho, passando pela aceleração da deterioração dos serviços públicos de saúde e de educação até chegar à proteção cotidiana contra a violência.


Uma reforma democrática da política supõe a refundação do Estado brasileiro, que precisa deixar de ser privatizado


Uma reforma democrática da política supõe a refundação do Estado brasileiro, que precisa deixar de ser privatizado, para se articular em torno da esfera pública, aquela responsável pela universalização dos direitos. Um instrumento essencial desse processo é a política de Orçamento Participativo, através da qual a cidadania organizada, e não o Banco Central ou alguma outra instância, inclusive o FMI, sobre o qual a população, que trabalha e paga impostos, tem que ter seus direitos garantidos como prioridade por parte do Estado, deve decidir sobre o destino dos recursos arrecadados. Sem essa forma democrática de decisão, a sociedade seguirá sendo alienada em relação ao Estado e às formas de transferência de recursos de uns setores sociais para outros.
Questões como a taxa de juros e o déficit público, que afetam profundamente a vida da população de forma extremamente negativa, como se viu pelo balanço terrível sobre a população no ano passado, não podem ser de responsabilidade de tecnocratas, sem controle social, vários deles até recentemente altos funcionários de bancos -justamente os que mais lucram com essa política anti-social.
Ao mesmo tempo, uma reforma do sistema político requer uma redefinição profunda das relações entre governantes e governados, entre representantes e representados. Isso não será obtido com uma medida cosmética qualquer, como o voto distrital, por exemplo. Este só avança nessa direção essencial se for instrumento para o voto condicionado, isto é, para o poder dos eleitores de destituir, a qualquer momento do mandato, seus representantes, conforme estes descumpram o voto, considerado um contrato político entre eleitores e eleitos. Só assim a cidadania poderá controlar, junto com o Orçamento Participativo, a atuação dos governantes.
O Brasil perdeu uma oportunidade histórica de fazer a reforma tributária com um profundo caráter redistributivo, essencial para um país com a péssima distribuição de renda que temos. Não pode agora perder a oportunidade de revigorar o sistema político, fazendo um arremedo de reforma -tão a gosto dos que se perpetuam nos cargos de poder-, em vez de redefinir as relações entre governantes e governados.
Como dizia Gramsci, há dois tipos de político: os que querem aprofundar o fosso entre governantes e governados e os que lutam para superá-lo, pela socialização da política e do poder, constituindo todos os indivíduos como cidadãos. Aqueles são os oligarcas, estes os democratas.

Emir Sader, 60, é professor de sociologia da USP e da Uerj, onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas. É autor de "A Vingança da História" (Boitempo Editorial), entre outros livros.


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