São Paulo, domingo, 19 de abril de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Escolha entre a peste e o cólera

JOSÉ ELI DA VEIGA

Muita gente se esforça em dizer algo diverso, mas no 2º turno da eleição presidencial de 2010 estarão em disputa dois projetos conservadores

DIFERENTEMENTE do que muita gente se esforça em apregoar, no segundo turno da eleição presidencial de 2010 estarão em disputa dois projetos conservadores. Nem de longe um projeto progressista, assumido por Dilma ou Ciro, contraposto a um projeto conservador, carregado com desconforto por Serra ou Aécio.
Tal desejo até poderia ser razoável no contexto do século 20, mas passou a ser inviável em circunstâncias nas quais os quatro pré-candidatos serão levados a apresentar projetos objetivamente conservadores, por mais que possam pretender o contrário.
O fato mais atual para ilustrar tão cético prognóstico é o programa Minha Casa, Minha Vida. Em meados do século passado, seria indiscutivelmente progressista, pois visa a atender uma angustiante necessidade das camadas sociais mais desfavorecidas, permitindo, simultaneamente, que algo como 100 mil empresas gerem por ano uns 15 mil empregos diretos e 11 mil indiretos para cada R$ 1 bilhão investido. Todavia, em época que o próprio G20 define como de "transição para tecnologias e infraestrutura limpas, inovadoras e eficientes no uso de recursos naturais", torna-se imprescindível considerar quais serão as implicações energéticas dessa expansão habitacional.
Só seria progressista um plano que simultaneamente incentivasse mudança no padrão construtivo capaz de contrariar a atual preferência governamental por termelétricas a óleo combustível, caracterizada como crime de lesa-humanidade pelo físico Rogério Cezar C. Leite em artigo publicado neste espaço em 31/3.
Mesmo que fosse descartada como inviável a pretensão de obter grau de eficiência energética comparável ao da casa "passiva" (en.wikipedia.org/wiki/Passive-house), o programa ao menos deveria acatar as sugestões do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente baseadas no exemplo inovador do projeto habitacional de Kuyasa, na África do Sul (www.unep.fr/scp/publications/details.asp?id=DTI/1071/PA), que se beneficiou das vantagens oferecidas pelo mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL). Ou, no mínimo, exigir que parte significativa da demanda energética de cada nova construção fosse atendida por dispositivos fotovoltaicos.
Tanto quanto essa política habitacional, praticamente todos os investimentos em infraestrutura previstos no PAC mostram que as diretrizes políticas do governo Lula nada têm de progressistas. Basta lembrar, por exemplo, que, na Amazônia, elas acelerarão muito mais as emissões de gases-estufa decorrentes de desmatamentos e queimadas do que supostos incrementos do PIB nacional. Em contraste aberto com a transição a uma economia de baixo carbono, além de negar o próprio compromisso do Brasil na reunião de Poznan (Polônia), no final de 2008.
Por outro lado, quase todas as críticas ao PAC são centradas na lentidão, ineficiência ou incompetência de sua execução. Jamais se ouviu de algum expoente oposicionista qualquer reparo à sua própria concepção. E ela é essencialmente anacrônica, pois se baseia na suposição de que qualquer aumento do PIB -seja como for obtido- se traduzirá em desenvolvimento, como se entre os dois houvesse alguma reação linear e automática. E isso justamente num país que dá um dos melhores exemplos históricos da falta de sincronia entre turbinagem do PIB e efetivo desenvolvimento.
Assim como os quadros do governo Lula, os adeptos das quatro pré-candidaturas já definidas são vítimas da inércia de um modelo mental no qual a economia foi concebida como um sistema fechado e independente da biosfera. Pior: também de uma ética que desdenha trocas intertemporais em favor das gerações futuras.
Duas lideranças políticas poderiam apresentar uma plataforma realmente progressista aos eleitores: o deputado Fernando Gabeira e a senadora Marina Silva. Mas não conseguiriam alcançar o segundo turno por causa do viés antirrenovador das regras eleitorais sobre o uso dos meios de comunicação de massa. Assim, será muito melhor para a sociedade brasileira que eles garantam trincheiras no Senado ou em governos estaduais, em vez de irem para o sacrifício em candidatura presidencial.
Em suma, não haverá maneira de evitar que o próximo presidente da República saia de uma escolha entre a peste e o cólera, tirada sarcástica do saudoso herói antinazista Jacques Duclos.


JOSÉ ELI DA VEIGA, 60, é professor titular de economia da USP. É autor, entre outras obras, de "A Emergência Socioambiental".

www.zeeli.pro.br


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