São Paulo, sexta-feira, 19 de maio de 2000


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Perplexidade


A mão que planta a desigualdade é a mesma que embala o furor racista -as duas atitudes legitimam a exclusão


NATAN BERGER

É com grande pesar que temos lido notícias contendo declarações que praticam abertamente discriminação de cunho étnico e religioso contra nós, judeus, envolvendo João Pedro Stedile, um dos líderes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
Não temos intenção de fazer aqui análise do MST, de suas reivindicações ou de suas condutas recentes, o que resultaria em aligeiramento do tema. A questão agrária é um dos problemas históricos mais sérios e complexos do Brasil. Além disso, lamentamos a perda de vidas de sem-terra em confrontos e seria inaceitável que essas mortes ficassem relegadas ao esquecimento.
Contudo não é possível calar quando se toma conhecimento de que Stedile teria dito que Jaime Lerner é o "único judeu no Brasil a praticar o nazismo". Uma semana depois dessa afirmação, deparamos com foto de missa cuja celebração teve por cenário um cartaz trazendo ataques de natureza semelhante.
O impacto desses gestos de discriminação é tão grande, em particular por virem de movimento que alcançou visibilidade internacional como defensor de causas sociais, que temos apenas expressões de perplexidade.
Como é possível alguém lutar por justiça se o faz atacando seres humanos que, respeitando as leis de sua pátria, fazem apenas viver sua identidade étnica e religiosa? Como seria possível uma luta por igualdade se, em vez de cobrar as responsabilidades de Lerner como governante -atitude própria da democracia-, o que se faz é condená-lo por ser judeu, como se tal identidade fosse um crime? Que ideal igualitário sustentaria essa argumentação?
Por qual democracia se luta, quando a diversidade cultural e o pluralismo religioso são atacados?
Se tudo isso é incompreensível e traz perplexidade, encontramos uma forma de lembrar que vivemos em um país democrático, que acolhe gente de tantas origens e que ainda assim se apresenta cheio de contradições. Lembramos de um momento, em 1992, em que uma onda de ataques a nordestinos, negros e judeus propiciou-nos a possibilidade de descobrirmos que não estávamos sós.
Saímos de nossa revolta e do medo frequente nessas ocasiões para nos encontrarmos em gesto público mutuamente solidário. Ali sentimos, na instalação de nosso movimento, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo, o apoio de mais de centena de entidades da sociedade civil, que nada teriam a ver com nosso problema. Mas sabiam ser indispensável dizer um basta à intolerância pelo bem de todos, pelo bem da democracia.
Que não haja engano: a mão que planta a desigualdade é a mesma que embala o furor racista -as duas atitudes legitimam a exclusão.
Tempos difíceis como este que vivemos são cheios de tensão, propensos a que se busquem bodes expiatórios. A história já mostrou aonde leva esse processo. É um erro minimizar a brutalidade do preconceito e da discriminação, independentemente de sua procedência, seu alvo ou sua intensidade.
Não nos calaremos. Postamo-nos publicamente junto de todos aqueles que têm se dedicado à construção democrática de nosso país. Temos o direito de ser respeitados e vivenciar em igualdade de condições o nosso compromisso de cidadania. Respeitamos integralmente o MST. Exigimos reciprocidade.


Natan Berger, 54, empresário, é presidente da Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp).



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