São Paulo, quarta-feira, 19 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Nem tanto, nem tão pouco

EDUARDO GRAEFF

A hipérbole é uma praga endêmica na política. Impossível de erradicar, até certo ponto tolerável, mas faz estragos quando a tendência humana de engrandecer os próprios feitos resvala na mistificação deslavada.
O governo do PT padece desse mal em estágio avançado, como se sabe. Em parte pelo estilo pessoal de Lula, mas basicamente por causa da armadilha política que armou para si mesmo. Como é que se conduz um partido que toda a vida cultivou a simbologia da libertação nacional e da revolução socialista, para de repente assumir a missão de dar continuidade a "meras" reformas democratizantes num país da periferia do capitalismo? Na falta de discussão prévia com as bases partidárias, a resposta do diunvirato Lula-Dirceu a esse dilema tem sido a mistura de pirotecnia verbal com aparelhismo.
Pautada pelas inquietações opostas do público interno do PT, nostálgico de alguma esperançazinha revolucionária, e do público externo de empresários, investidores e da opinião conservadora em geral, ávido de garantias de estabilidade, a fala oficial recorre ao exagero descabelado como uma espécie de sucedâneo já não da ruptura, mas das mudanças que o governo não consegue produzir. "Pela primeira vez neste país isto ou aquilo... Fazer em 500 dias o que não fizeram em 500 anos... O maior programa social da face da Terra..."
Que bicho vai dar quando o eleitor enjoar dessa xaropada, como as pesquisas já indicam? O aparelhamento da máquina federal pode ser capaz de manter a tropa petista irrequieta mas em fila. Já a maioria do Congresso, os investidores e a mídia, tudo o que deve segurá-los é o medo do mal maior do desgoverno. Bendito medo que nos guarda do risco de alguma crise séria!
Se a democracia pode agüentar alguma turbulência pela frente, como já agüentou nestes 20 anos, o efeito do Lula-blá-blá-blá sobre a qualidade do debate público não me deixa tão tranqüilo. Tomara que a praga da grandiloqüência oca não se espalhe a ponto de podar ou atrasar desnecessariamente a discussão das alternativas necessárias para o fiasco petista.


O problema da oposição é antes manter a sintonia com os múltiplos canais onde uma nova agenda pode estar sendo gestada


Pegue o noticiário dos últimos dias e experimente fazer o seguinte: de um lado separe as análises, bem fundamentadas ou nem tanto, que apontam as dificuldades da atual política econômica e ficam nisso. De outro lado, esprema as manifestações pedindo um "novo modelo" de desenvolvimento em contraposição ao "neoliberalismo", "monetarismo", "malanismo" ou sei lá (também nesse campo de pensamento o mal tem muitos nomes).
Descarte, por favor, os apelos aflitos -de empresários, da base do governo, de ministros, até de dentro do Palácio do Planalto- por mais "ousadia", como se a economia fosse um carro de corrida e faltasse um piloto para andar com fé em Deus e o pé na tábua. Está certo que pilotagem é fundamental na política econômica, como em toda política. Não adianta ter um bom mapa se você tropeça no primeiro imprevisto. Mas ousadia?! Que é isso? Um dote técnico ou psicológico independente da fragilidade política do governo? Ou será, afinal, o nome enfim revelado do "novo modelo"? Sai o neoliberalismo, entra a ousadia. Ora, nem tanto, nem tão pouco!
Agora junte o que passar na peneira e tente encher uma xícara de alternativas políticas plausíveis. Difícil, não é?
É, mas não impossível. Garimpando bem, o debate traz argumentos consistentes mostrando como seria possível, em outro contexto político, manejar melhor câmbio, juros e a equação fiscal para afrouxar o nó da balança de pagamentos e dar alguma folga para o crescimento da economia. Há uma apreciação mais desinibida do papel da ação governamental para reconhecer e fomentar vantagens competitivas do país na economia global. Há idéias interessantes, correndo meio por fora, sobre como tecnologia e inovação podem ampliar os graus de liberdade da política econômica. Há propostas para consolidar e ampliar a agenda das reformas do Estado, que continua sendo um osso duro de roer. Para não cair no economicismo, também existe uma consciência crescente da importância do capital social e do enraizamento das práticas democráticas como base de um desenvolvimento sustentável e mais equilibrado.
Começaram a cobrar a oposição -o PSDB, principalmente. Alguns, já de dedo em riste: "Como é, vocês vão ficar só esperando para surfar na onda da desilusão com Lula ou têm alguma idéia nova para apresentar?".
Digo que, contudo e por tudo, as idéias vão aparecendo. Na universidade (em algumas instituições), em centros de estudos autônomos, nos fóruns técnicos, profissionais e de classe, na imprensa, até nos partidos, embora não seja nossa tradição ter usinas de idéias nos partidos.
O problema da oposição é antes manter a sintonia com os múltiplos canais onde uma nova agenda para o país pode estar sendo gestada. Deixando o PT no governo às voltas com seus próprios dilemas. E sem se deixar contagiar nem distrair pela pirotecnia retórica.

Eduardo Graeff, 54, sociólogo, foi assessor parlamentar e secretário-geral da Presidência da República no governo Fernando Henrique Cardoso.


Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Arnaldo Niskier: Invencioneiro e linguarudo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.