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TENDÊNCIAS/DEBATES
Falácias sobre a luta armada na ditadura
MARCO ANTONIO VILLA
Militantes de grupos de luta armada criaram um discurso eficaz. Quem questiona "vira" adepto da ditadura. Assim, evitam o debate
A LUTA armada, de tempos em
tempos, reaparece no noticiário. Nos últimos anos, foi se
consolidando uma versão da história
de que os guerrilheiros combateram a
ditadura em defesa da liberdade. Os
militares teriam voltado para os quartéis graças às suas heróicas ações. Em
um país sem memória, é muito fácil
reescrever a história. É urgente enfrentarmos essa falácia. A luta armada não passou de ações isoladas de assaltos a bancos, seqüestros, ataques a
instalações militares e só. Apoio popular? Nenhum. O regime militar
acabou por outras razões.
Argumentam que não havia outro
meio de resistir à ditadura, a não ser
pela força. Mais um grave equívoco:
muitos dos grupos existiam antes de
1964 e outros foram criados logo depois, quando ainda havia espaço democrático (basta ver a ampla atividade cultural de 1964-1968). Ou seja, a
opção pela luta armada, o desprezo
pela luta política e pela participação
no sistema político e a simpatia pelo
foquismo guevarista antecedem o AI-5 (dezembro de 1968), quando, de fato, houve o fechamento do regime.
O terrorismo desses pequenos grupos deu munição (sem trocadilho) para o terrorismo de Estado e acabou
usado pela extrema-direita como pretexto para justificar o injustificável: a
barbárie repressiva.
Todos os grupos de luta armada defendiam a ditadura do proletariado.
As eventuais menções à democracia
estavam ligadas à "fase burguesa da
revolução". Uma espécie de caminho
penoso, uma concessão momentânea
rumo à ditadura de partido único.
Conceder-lhes o estatuto histórico de
principais responsáveis pela derrocada do regime militar é um absurdo.
A luta pela democracia foi travada
nos bairros pelos movimentos populares, na defesa da anistia, no movimento estudantil e nos sindicatos.
Teve na Igreja Católica um importante aliado, assim como entre os intelectuais, que protestaram contra a
censura. E o MDB, nada fez? E seus
militantes e parlamentares que foram perseguidos? E os cassados?
Quem contribuiu mais para a restauração da democracia: o articulador
de um ato terrorista ou o deputado federal emedebista Lisâneas Maciel,
defensor dos direitos humanos, que
acabou sendo cassado pelo regime
militar em 1976? A ação do MDB, especialmente dos parlamentares da
"ala autêntica", precisa ser relembrada. Não foi nada fácil ser oposição nas
eleições na década de 1970.
Os militantes dos grupos de luta armada construíram um discurso eficaz. Quem questiona é tachado de
adepto da ditadura. Assim, ficam protegidos de qualquer crítica e evitam o
que tanto temem: o debate, a divergência, a pluralidade, enfim, a democracia. Mais: transformam a discussão política em questão pessoal, como
se a discordância fosse uma espécie
de desconsideração dos sofrimentos
da prisão. Não há relação entre uma
coisa e outra: criticar a luta armada
não legitima o terrorismo de Estado.
Precisamos romper o círculo de
ferro construído, ainda em 1964, pelos inimigos da democracia, tanto à
esquerda como à direita. Não podemos ser reféns, historicamente falando, daqueles que transformaram o
adversário, em inimigo; o espaço da
política, em espaço de guerra.
Um bom caminho para o país seria
a abertura dos arquivos do regime militar. Dessa forma, tanto a ação contrária ao regime como a dos "defensores da ordem" poderiam ser estudadas, debatidas e analisadas.
Parece, porém, que o governo não
quer. Optou por uma espécie de "cala-boca" financeiro. Rentável, é verdade.
Injusto, também é verdade. Tanto pelo pagamento de indenizações milionárias a privilegiados como pelo
abandono de centenas de perseguidos que até hoje não receberam nenhuma compensação. É fundamental
não só rever as indenizações já aprovadas como estabelecer critérios rigorosos para os próximos processos.
Enfim, precisamos romper os tabus
construídos nas últimas quatro décadas: criticar a luta armada não é
apoiar a tortura, assim como atacar a
selvagem repressão do regime militar
não é defender o terrorismo.
O pagamento das indenizações não
pode servir como cortina de fumaça
para encobrir a história do Brasil. Por
que o governo teme a abertura dos arquivos? Abrir os arquivos não significa revanchismo ou coisa que o valha.
O desinteresse do governo pelo tema
é tão grande que nem sequer sabe onde estão os arquivos das Forças Armadas e dos órgãos civis de repressão.
Mantê-los fechados só aumenta os
boatos e as versões fantasiosas.
MARCO ANTONIO VILLA, 51, é professor de história do
Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e autor, entre outros livros, de
"Jango, um perfil".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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