São Paulo, terça-feira, 19 de maio de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Dupla impunidade

ANDRÉ FRANCO MONTORO FILHO


Apesar dos escândalos, os congressistas têm sido eleitos e reeleitos. Há algo errado no processo de escolha dos representantes

DELITOS , contravenções e transgressões são comuns em todos os países. O que distingue os países mais desenvolvidos dos demais é que, lá, esses crimes são punidos rapidamente e, muitas vezes, pelos próprios transgressores, que, marcados pela vergonha e pela repulsão social, se autopunem, renunciando a seus cargos e algumas vezes até se suicidando.
Não desejo esses atos extremos no Brasil. Mas a impunidade que grassa em nosso país já passou dos limites aceitáveis. E isso é dramático para a construção de uma nação próspera, justa e civilizada.
A sensação que está sendo criada no Brasil é a de que o caminho mais fácil para vencer na vida é ser "esperto", malandro e desonesto. Não cumprir regras nem leis, escritas ou morais. O que importa é tirar vantagem em todas as situações, mesmo que isso implique atos ilícitos.
Caso esses atos sejam descobertos, parece que há uma crença de que no final se dará um "jeitinho". Um advogado especializado, alguma "gentileza" para os agentes da lei, o tempo passa, a punição é postergada e o delito acaba sendo esquecido. Afinal, todo mundo faz. O transgressor volta ao convívio social como se nada tivesse ocorrido. Ele se beneficia, assim, de dupla impunidade: a jurídica, pela lentidão dos processos, e a social, pela tolerância da população.
É preciso mudar e acabar com essa dupla impunidade em nosso país.
Propostas para obter maior agilidade e celeridade nos processos judiciais têm recebido a atenção de muitas autoridades do próprio Judiciário, do Legislativo e de muitos especialistas.
Apesar de serem da maior importância para a correção de rumos da sociedade brasileira, não pretendo aprofundar esse tema neste artigo.
Meu objetivo é comentar a impunidade social, em especial a impunidade eleitoral.
O voto é a arma que a população tem para punir maus políticos. No entanto, congressistas que reconhecidamente praticaram atos ilícitos, inclusive com provas, confissões e renúncias, são reeleitos -e até com boa votação. Isso significa que a população não tem punido, pelo voto, aqueles comportamentos que chocam a opinião pública.
O recente escândalo com as passagens de parlamentares federais é mais um a se somar a uma longa lista que indica a captura do Congresso por dois grupos de interesses externos. Interesses do Executivo e interesses de grupos econômicos.
O primeiro se refere à quase total subordinação do Poder Legislativo às vontades do Poder Executivo, transformando em letra morta o mandamento constitucional de independência e harmonia dos Poderes. Por meio de negociações, quase sempre fisiológicas, o Executivo tem alcançado folgada maioria parlamentar para aprovação de suas iniciativas.
A segunda captura se dá por interesses de grupos econômicos. Não necessariamente de grandes grupos -pois estes, além de regras internas e externas de governança corporativa, são facilmente identificados e fiscalizados-, mas especialmente de grupos regionais localizados nas "bases" dos congressistas que têm obtido verbas para projetos locais e vantagens tributárias.
Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, reza o parágrafo único do primeiro artigo de nossa Constituição. A teoria da democracia representativa se baseia na hipótese de que o representante deve corresponder aos anseios de seus eleitores, caso contrário, ele não receberia os votos, e a população elegeria outro representante.
Como, apesar desses escândalos, esses congressistas têm sido eleitos e reeleitos, existem duas alternativas.
Ou a população está satisfeita com seus representantes, ou há algo errado no processo de escolha dos representantes. Eu me inclino para a segunda alternativa.
A realidade mostra e pesquisas confirmam que é muito tênue a relação entre o eleitor e o político. O brasileiro não vê o congressista como o seu representante. A maioria nem sabe em quem votou.
Além de razões históricas e sociológicas, o fato é que o processo eleitoral não está desenvolvendo a noção de representação que é essencial para o funcionamento de uma democracia representativa. Sem essa noção, o eleitor não se sentirá responsável por julgar e punir seus representantes.
Isso demonstra a necessidade de mudar o processo de votação e escolher um sistema que promova a identificação do congressista como o representante do eleitor, representante este que, se não agradar, pode ser substituído e punido pelo voto. O sistema mais adotado no mundo é o do voto distrital. Mas existem outros. O fato é que é indispensável mudar.


ANDRÉ FRANCO MONTORO FILHO , 65, doutor em economia pela Universidade Yale (EUA), é professor titular da FEA-USP e presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial-ETCO. Foi secretário de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo (governo Mário Covas) e presidente do BNDES (1985 a 1988).

www.etco.org.br

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