São Paulo, sexta-feira, 19 de junho de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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Reencontro com o Mercosul

MARCELO COUTINHO


Por resistirem à liberalização, os governos de "esquerda" foram responsáveis pela asfixia da integração econômica do Mercosul

CAMINHAMOS para o fim da primeira década do século 21 com o diagnóstico de que, infelizmente, a integração entre as economias do Cone Sul deixou de ser concebida como projeto estratégico de crescimento, capaz de oferecer os meios mais condizentes à inserção internacional.
O momento de crise econômica pode, contudo, ao menos fazer reabrir seriamente o debate, situando a integração numa verdadeira perspectiva de desenvolvimento regional.
Por resistirem à liberalização, os governos intitulados de "esquerda" foram responsáveis pela asfixia do processo de integração econômica do Mercosul. Sob o falso argumento de que estariam ampliando a discussão para uma pauta social e participativa, esses governos, incluindo o Brasil, na verdade paralisaram o bloco.
Em nome de um regionalismo supostamente diferenciado, não deram continuidade à integração das cadeias produtivas e à diminuição das barreiras comerciais e perfurações da tarifa externa comum, repetindo -guardadas as devidas distinções- o mesmo retraimento do organismo que fez a antiga Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc) desaparecer nos anos 1970, durante os regimes militares.
Os projetos de integração regional hoje "são um corpo sem espírito", nas próprias palavras de um ministro do governo Lula.
Até 2008, o comércio relativo intrabloco havia estacionado em torno de 15%, ou seja, em proporções bem menores aos da década anterior, quando a participação do bloco chegou a responder por 23% do total das importações e exportações, apresentando um crescimento na ordem de 302%.
Com a atual crise -que abateu sobretudo a indústria-, o comércio entre os parceiros do Mercosul simplesmente despencou para um dos seus piores patamares. Agrava a situação o recrudescimento do protecionismo, o deslocamento comercial em favor da China e a falta de uma agenda compatível com os interesses nacionais.
Na segunda metade dos anos 1950, a inteligência latino-americana reunida na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) já indicava o problema da exiguidade dos mercados domésticos para o desenvolvimento da região.
Há meio século, portanto, sabe-se que, coordenados, temos mais chances de atrair investimentos, diversificar relações, dinamizar o comércio e crescer a partir da expansão de escala.
Com a interdependência econômica global, o surgimento de novos grandes conglomerados e a revalorização das regiões como atores coletivos e plataformas de mercado, a integração econômica sul-americana se tornou fundamental para os propósitos de desenvolvimento, de maneira distinta aos termos da substituição de importações.
Essa compreensão não sensibilizou suficientemente as atuais lideranças regionais, que relegaram o Mercado Comum do Sul a um segundo plano, embora este seja o aspecto mais importante da nossa política externa desde a redemocratização.
Em função de suas finalidades políticas, o alcance prático da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) como instrumento promotor do desenvolvimento econômico é extremamente limitado.
Ainda que com todas as dificuldades, essa tarefa cabe ao Mercosul, que já deveria funcionar como polo exportador também de manufaturados para o restante das Américas e para os países africanos.
A estratégia globalista pós-neoliberal não pode prescindir da regionalização. A despeito de alguns conflitos, são faces da mesma moeda. Os desentendimentos comerciais dentro do bloco não ultrapassam 14% do total, o que torna uma negociação plenamente factível entre seus membros, sem prejuízo das aspirações globais.
Sendo assim, a união aduaneira representa não um peso, mas alavanca para nossa maior competitividade internacional. De uma vez por todas, o Mercosul não pode ser visto como amarra ou obstáculo. Ele é parte substantiva da solução de problemas compartilhados. É falaciosa a ideia de que basta transformá-lo em mera área de livre comércio ou zona preferencial para resolver as nossas necessidades.
Precisamos nos reencontrar verdadeiramente com o Mercosul e o desenvolvimento a partir de uma agenda corajosa, na qual possamos repartir alguns setores industriais, obtendo boas contrapartidas, e em que a adesão de outros países, como a Venezuela, seja encarada com naturalidade.
O importante neste momento de crise é evitar que as áreas de tensão comercial se espalhem, dificultando ainda mais um projeto de crescimento conjunto e recuperação futura.


MARCELO COUTINHO, 34, doutor em ciência política, é professor de relações internacionais da UnB (Universidade de Brasília) e coordenador do Observatório Político Sul-Americano do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro).


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