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O sistema de metas de inflação é hoje o mais adequado à economia brasileira?
NÃO
O rabo abanando o cachorro
GUIDO MANTEGA
Certos economistas brasileiros têm
irresistível fascinação pelos modelos de
língua inglesa que desembarcam nos
luxuosos gabinetes do BC e do Ministério da Fazenda. Não se trata, evidentemente, de Cindy Crawford, mas de figuras bem menos aprazíveis, como o
"currency board" e o "inflation targeting", este conhecido por aqui como
sistema de metas inflacionárias, recém-eleito pelo governo como sucessor
da âncora cambial (leia-se da sobrevalorização do real), de triste lembrança.
Esse regime tem potencial destrutivo
menor que o da sobrevalorização, mas
é uma estratégia tosca e inadequada para ancorar a política econômica. Erroneamente, elege a inflação como o
principal problema do país e relega a
segundo plano a abulia em que está
mergulhada a máquina produtiva.
Apesar do nome pomposo, o "inflation targeting" nada mais é que o compromisso do BC em não deixar que a
inflação ultrapasse um patamar preestabelecido. Se a inflação ameaçar subir,
as autoridades monetárias elevam os
juros, restringem o crédito e podem até
atuar no câmbio, tudo como manda o
figurino da tradição neoliberal. Assim,
os principais instrumentos de política
econômica são, primeiramente, orientados para a contenção da inflação; secundariamente, para outros objetivos.
Ora, certamente há uma unanimidade no Brasil: a inflação deve ser mantida sob controle, com crescimento e estabilidade harmonizados. Mas não se
pode tolerar o sacrifício do crescimento em nome de um ímpeto inflacionário que só existe na imaginação dos liberais. Parece que, de tanto ir ao exterior em busca de inspiração, nossos
economistas de plantão não perceberam que aqui a inflação está bem-comportada. Ela só será positiva em junho
graças aos aumentos de energia elétrica, serviços telefônicos e combustíveis
autorizados pelo próprio governo.
É bem verdade que as projeções econômicas não são o forte desse governo.
O ministro da Fazenda chegou a assinar uma carta de intenções com o FMI
que previa uma inflação de 16,8% para
99 (ela não deve passar de 10%). Para
2000, o governo cogita uma inflação de
6% -provavelmente, mais uma projeção excessiva, que pode levar a uma
austeridade inútil na política monetária. O grande problema de superestimar a inflação futura é manter, por
conta disso, uma dose exagerada de juros e outras medidas de contenção, que
impedem o deslanche da economia.
Convém lembrar que o sistema, adotado na Inglaterra após o ataque especulativo de George Soros contra a libra
esterlina, não se transformou num
"deus ex machina". Temia-se que a
desvalorização da moeda inglesa produzisse um surto inflacionário, e o governo tratou de acalmar o mercado
comprometendo-se com uma política
de combate à inflação. Afastado o perigo, o governo Blair se empenhou num
programa de crescimento e combate ao
desemprego, circunscrevendo o alcance dessa política monetária recessiva.
Entretanto a adoção das metas inflacionárias como espinha dorsal da política econômica sugere que tudo o mais
ficará subordinado à austeridade monetária. Em vez de definir um programa de crescimento que oriente a política fiscal e monetária, determine a queda substancial dos juros e a liberação
do crédito para a produção, nossos estrategistas colocam a política fiscal e
todos os instrumentos do governo a reboque de uma política monetária severa, numa economia semi-estagnada,
com nítidos sinais de deflação. É um
bom exemplo de como fazer o rabo
abanar o cachorro. Talvez tivesse algum sentido com a inflação em alta.
Mas aqui, onde a inflação ficou aquém
de 2% em 1998 e está próxima de zero
mesmo depois da aventura cambial, é
chover no molhado ou manter-se fiel à
tradição liberal de pôr sempre a política monetária em primeiro plano.
Esse é mais um equívoco de um governo que, incapaz até agora de apresentar um projeto de desenvolvimento,
deu as costas ao desemprego e está
mais preocupado em agradar à banca
internacional do que em resolver nossos problemas econômicos. O sistema
representa o triunfo da política monetária conservadora e a postergação da
retomada do crescimento, de que a população desesperadamente precisa.
Guido Mantega, 50, economista, doutor pela USP, é
professor da FGV-SP e autor de "A Economia Política
Brasileira". Foi diretor de Orçamento do município de
São Paulo (1989 a 92). E-mail: gmeb@mandic.com.br
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