São Paulo, Sábado, 19 de Junho de 1999
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O sistema de metas de inflação é hoje o mais adequado à economia brasileira?

NÃO
O rabo abanando o cachorro

GUIDO MANTEGA

Certos economistas brasileiros têm irresistível fascinação pelos modelos de língua inglesa que desembarcam nos luxuosos gabinetes do BC e do Ministério da Fazenda. Não se trata, evidentemente, de Cindy Crawford, mas de figuras bem menos aprazíveis, como o "currency board" e o "inflation targeting", este conhecido por aqui como sistema de metas inflacionárias, recém-eleito pelo governo como sucessor da âncora cambial (leia-se da sobrevalorização do real), de triste lembrança.
Esse regime tem potencial destrutivo menor que o da sobrevalorização, mas é uma estratégia tosca e inadequada para ancorar a política econômica. Erroneamente, elege a inflação como o principal problema do país e relega a segundo plano a abulia em que está mergulhada a máquina produtiva.
Apesar do nome pomposo, o "inflation targeting" nada mais é que o compromisso do BC em não deixar que a inflação ultrapasse um patamar preestabelecido. Se a inflação ameaçar subir, as autoridades monetárias elevam os juros, restringem o crédito e podem até atuar no câmbio, tudo como manda o figurino da tradição neoliberal. Assim, os principais instrumentos de política econômica são, primeiramente, orientados para a contenção da inflação; secundariamente, para outros objetivos.
Ora, certamente há uma unanimidade no Brasil: a inflação deve ser mantida sob controle, com crescimento e estabilidade harmonizados. Mas não se pode tolerar o sacrifício do crescimento em nome de um ímpeto inflacionário que só existe na imaginação dos liberais. Parece que, de tanto ir ao exterior em busca de inspiração, nossos economistas de plantão não perceberam que aqui a inflação está bem-comportada. Ela só será positiva em junho graças aos aumentos de energia elétrica, serviços telefônicos e combustíveis autorizados pelo próprio governo.
É bem verdade que as projeções econômicas não são o forte desse governo. O ministro da Fazenda chegou a assinar uma carta de intenções com o FMI que previa uma inflação de 16,8% para 99 (ela não deve passar de 10%). Para 2000, o governo cogita uma inflação de 6% -provavelmente, mais uma projeção excessiva, que pode levar a uma austeridade inútil na política monetária. O grande problema de superestimar a inflação futura é manter, por conta disso, uma dose exagerada de juros e outras medidas de contenção, que impedem o deslanche da economia.
Convém lembrar que o sistema, adotado na Inglaterra após o ataque especulativo de George Soros contra a libra esterlina, não se transformou num "deus ex machina". Temia-se que a desvalorização da moeda inglesa produzisse um surto inflacionário, e o governo tratou de acalmar o mercado comprometendo-se com uma política de combate à inflação. Afastado o perigo, o governo Blair se empenhou num programa de crescimento e combate ao desemprego, circunscrevendo o alcance dessa política monetária recessiva.
Entretanto a adoção das metas inflacionárias como espinha dorsal da política econômica sugere que tudo o mais ficará subordinado à austeridade monetária. Em vez de definir um programa de crescimento que oriente a política fiscal e monetária, determine a queda substancial dos juros e a liberação do crédito para a produção, nossos estrategistas colocam a política fiscal e todos os instrumentos do governo a reboque de uma política monetária severa, numa economia semi-estagnada, com nítidos sinais de deflação. É um bom exemplo de como fazer o rabo abanar o cachorro. Talvez tivesse algum sentido com a inflação em alta. Mas aqui, onde a inflação ficou aquém de 2% em 1998 e está próxima de zero mesmo depois da aventura cambial, é chover no molhado ou manter-se fiel à tradição liberal de pôr sempre a política monetária em primeiro plano.
Esse é mais um equívoco de um governo que, incapaz até agora de apresentar um projeto de desenvolvimento, deu as costas ao desemprego e está mais preocupado em agradar à banca internacional do que em resolver nossos problemas econômicos. O sistema representa o triunfo da política monetária conservadora e a postergação da retomada do crescimento, de que a população desesperadamente precisa.


Guido Mantega, 50, economista, doutor pela USP, é professor da FGV-SP e autor de "A Economia Política Brasileira". Foi diretor de Orçamento do município de São Paulo (1989 a 92). E-mail: gmeb@mandic.com.br



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