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Para não ser em vão
A tragédia de Congonhas eleva uma crise endêmica a seu grau máximo e escancara o colapso
da aviação no Brasil
E
STÁ PARA ser esclarecida a
causa do maior acidente
da aviação brasileira. É
preciso esperar até que
sejam concluídas as investigações, necessariamente complexas. Mas algumas conexões entre
a tragédia -a segunda em dez
meses- e o descalabro que tomou conta do setor aéreo nacional já podem ser estabelecidas.
O Executivo federal não está
em condições de apresentar-se
diante do desastre com o vôo
3054 na posição de quem tenha
tomado todas as medidas para
maximizar a segurança em Congonhas. Acidentes acontecem,
mas a pista do aeroporto de
maior tráfego do país só foi reformada agora -o governo preferiu
investir antes no conforto e na
cosmética do terminal.
Acidentes acontecem, mas a
Infraero cometeu a imprudência
de liberar pousos e decolagens
no asfalto novo antes de ele ser
tratado com os sulcos ("grooving", ranhura em inglês) destinados a facilitar o escoamento da
água e melhorar a frenagem. Um
dia após uma derrapagem e sob
chuva, mantiveram-se as operações com a pista escorregadia.
Acidentes acontecem, mas o
Executivo permitiu o inchaço de
Congonhas, atendendo a conveniências comerciais das companhias aéreas -e à incapacidade
do próprio governo de viabilizar
investimentos para desafogar o
tráfego crescente de aviões. A
Anac, agência do setor, tem se
portado como uma extensão dos
interesses das empresas.
Incompetência, imprudência,
tragédia. A despeito das causas
do acidente com o Airbus A-320
da TAM, o desastre potencializa
a crise da aviação civil, escancara
a precariedade do transporte aéreo brasileiro e torna ainda mais
urgente uma redefinição ambiciosa e profunda do sistema.
É inacreditável que reiteradas
demonstrações de inépcia, ao
longo de dez meses de crise, não
tenham rendido nenhuma demissão no alto escalão do governo Lula. O descalabro aéreo necessita ser tratado com a seriedade técnica e a prioridade política
que o tema exige. No emaranhado burocrático atual, ações conseqüentes -como a que enfim
enquadrou a sublevação dos controladores militares- custam a
acontecer.
Enquanto as decisões se arrastam em Brasília, o tráfego aéreo
doméstico de passageiros cresce
à média anual de 13% há quatro
anos. Nesse ritmo, o volume de
usuários dobra a cada seis anos.
Se a estrutura de aeroportos e de
controle de vôo exibe reiterados
sinais de esgotamento hoje, que
dirá daqui a um ou dois anos.
É preciso deslanchar já um
programa de grandes investimentos que contemple, entre
outros itens, a construção do terceiro terminal de Guarulhos e de
um novo aeroporto na região
metropolitana de São Paulo. O
trágico acidente de anteontem
evidencia que Congonhas precisará deixar de operar, em prazo
visível, com vôos comerciais de
média e grande escala.
O aeroporto central de São
Paulo -com duas pistas curtas,
elevadas, sem área de escape e
incrustadas numa zona densamente povoada- transforma a
menor falha numa tragédia em
potencial. Desde já, a Anac precisa impor às companhias aéreas
uma redistribuição de seus vôos
para os aeroportos de Guarulhos
e Viracopos (Campinas), ainda
que essa providência implique,
na prática, restrição na oferta de
vôos a usuários da capital.
Outro passo necessário e
emergencial para desafogar o
tráfego aéreo na metrópole paulista é transferir pontos de conexão de viagens. Passageiros, por
exemplo, que saem de Curitiba
com destino a Belém não precisam fazer a troca de aviões na capital. A concentração em Congonhas dessas operações -bem como a permissão para partidas de
vôos charter de suas pistas- é
mais uma concessão feita pelas
autoridades às conveniências comerciais das empresas.
Se tem faltado poder de regulação do Estado onde ele é mais necessário -no planejamento do
setor e na imposição do interesse
público às companhias aéreas-,
sobra arcaísmo burocrático e
ideológico quando se trata de
alavancar os investimentos na
infra-estrutura aeroportuária. O
governo federal, como fartamente documentado, não teve fôlego
financeiro para acompanhar as
necessidades de gastos crescentes com o transporte aéreo.
As taxas aeroportuárias pagas
pelos passageiros não redundaram na expansão nem na modernização do sistema no ritmo que
seria adequado. O problema, no
entanto, não foi o governo ter
deixado de fazer tais investimentos com recursos próprios, a fim
de cumprir metas de saneamento fiscal. A falta mais grave foi
não ter permitido que outros
agentes tomassem a iniciativa.
A construção de um aeroporto
novo na Grande São Paulo poderia ser a contrapartida da concessão de Viracopos à iniciativa
privada, por exemplo. Operação
análoga em Cumbica poderia
render a construção de seu terceiro terminal e a aquisição dos
aparelhos mais atualizados para
operar com segurança até sob a
mais densa neblina. Outros investimentos necessários para o
setor -como os trens rápidos ligando terminais distantes a
grandes centros- seriam passíveis de ser realizados na base das
privatizações e das PPPs (parcerias público-privadas).
Mas, imobilizado, incompetente e confuso, o governo Lula
nada fez. Para que as mortes não
tenham sido de todo em vão, que
o acidente de Congonhas ao menos sirva para compelir a uma
profunda mudança de atitude.
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