São Paulo, quinta-feira, 19 de julho de 2007

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Para não ser em vão

A tragédia de Congonhas eleva uma crise endêmica a seu grau máximo e escancara o colapso da aviação no Brasil

E STÁ PARA ser esclarecida a causa do maior acidente da aviação brasileira. É preciso esperar até que sejam concluídas as investigações, necessariamente complexas. Mas algumas conexões entre a tragédia -a segunda em dez meses- e o descalabro que tomou conta do setor aéreo nacional já podem ser estabelecidas.
O Executivo federal não está em condições de apresentar-se diante do desastre com o vôo 3054 na posição de quem tenha tomado todas as medidas para maximizar a segurança em Congonhas. Acidentes acontecem, mas a pista do aeroporto de maior tráfego do país só foi reformada agora -o governo preferiu investir antes no conforto e na cosmética do terminal.
Acidentes acontecem, mas a Infraero cometeu a imprudência de liberar pousos e decolagens no asfalto novo antes de ele ser tratado com os sulcos ("grooving", ranhura em inglês) destinados a facilitar o escoamento da água e melhorar a frenagem. Um dia após uma derrapagem e sob chuva, mantiveram-se as operações com a pista escorregadia.
Acidentes acontecem, mas o Executivo permitiu o inchaço de Congonhas, atendendo a conveniências comerciais das companhias aéreas -e à incapacidade do próprio governo de viabilizar investimentos para desafogar o tráfego crescente de aviões. A Anac, agência do setor, tem se portado como uma extensão dos interesses das empresas.
Incompetência, imprudência, tragédia. A despeito das causas do acidente com o Airbus A-320 da TAM, o desastre potencializa a crise da aviação civil, escancara a precariedade do transporte aéreo brasileiro e torna ainda mais urgente uma redefinição ambiciosa e profunda do sistema.
É inacreditável que reiteradas demonstrações de inépcia, ao longo de dez meses de crise, não tenham rendido nenhuma demissão no alto escalão do governo Lula. O descalabro aéreo necessita ser tratado com a seriedade técnica e a prioridade política que o tema exige. No emaranhado burocrático atual, ações conseqüentes -como a que enfim enquadrou a sublevação dos controladores militares- custam a acontecer.
Enquanto as decisões se arrastam em Brasília, o tráfego aéreo doméstico de passageiros cresce à média anual de 13% há quatro anos. Nesse ritmo, o volume de usuários dobra a cada seis anos. Se a estrutura de aeroportos e de controle de vôo exibe reiterados sinais de esgotamento hoje, que dirá daqui a um ou dois anos.
É preciso deslanchar já um programa de grandes investimentos que contemple, entre outros itens, a construção do terceiro terminal de Guarulhos e de um novo aeroporto na região metropolitana de São Paulo. O trágico acidente de anteontem evidencia que Congonhas precisará deixar de operar, em prazo visível, com vôos comerciais de média e grande escala.
O aeroporto central de São Paulo -com duas pistas curtas, elevadas, sem área de escape e incrustadas numa zona densamente povoada- transforma a menor falha numa tragédia em potencial. Desde já, a Anac precisa impor às companhias aéreas uma redistribuição de seus vôos para os aeroportos de Guarulhos e Viracopos (Campinas), ainda que essa providência implique, na prática, restrição na oferta de vôos a usuários da capital.
Outro passo necessário e emergencial para desafogar o tráfego aéreo na metrópole paulista é transferir pontos de conexão de viagens. Passageiros, por exemplo, que saem de Curitiba com destino a Belém não precisam fazer a troca de aviões na capital. A concentração em Congonhas dessas operações -bem como a permissão para partidas de vôos charter de suas pistas- é mais uma concessão feita pelas autoridades às conveniências comerciais das empresas.
Se tem faltado poder de regulação do Estado onde ele é mais necessário -no planejamento do setor e na imposição do interesse público às companhias aéreas-, sobra arcaísmo burocrático e ideológico quando se trata de alavancar os investimentos na infra-estrutura aeroportuária. O governo federal, como fartamente documentado, não teve fôlego financeiro para acompanhar as necessidades de gastos crescentes com o transporte aéreo.
As taxas aeroportuárias pagas pelos passageiros não redundaram na expansão nem na modernização do sistema no ritmo que seria adequado. O problema, no entanto, não foi o governo ter deixado de fazer tais investimentos com recursos próprios, a fim de cumprir metas de saneamento fiscal. A falta mais grave foi não ter permitido que outros agentes tomassem a iniciativa.
A construção de um aeroporto novo na Grande São Paulo poderia ser a contrapartida da concessão de Viracopos à iniciativa privada, por exemplo. Operação análoga em Cumbica poderia render a construção de seu terceiro terminal e a aquisição dos aparelhos mais atualizados para operar com segurança até sob a mais densa neblina. Outros investimentos necessários para o setor -como os trens rápidos ligando terminais distantes a grandes centros- seriam passíveis de ser realizados na base das privatizações e das PPPs (parcerias público-privadas).
Mas, imobilizado, incompetente e confuso, o governo Lula nada fez. Para que as mortes não tenham sido de todo em vão, que o acidente de Congonhas ao menos sirva para compelir a uma profunda mudança de atitude.


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