São Paulo, sábado, 19 de julho de 2008

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Editoriais

Derrota de um estilo

O casal Kirchner sempre acreditou em confrontar para conquistar, mas forçou a mão no conflito agrícola e saiu perdendo

CRISTINA Kirchner assumiu a Argentina em condições muito menos adversas que as enfrentadas pelo marido, Néstor, quatro anos antes. Com menos de um quarto dos votos, ele chegava ao poder de um país fraturado, que tivera cinco presidentes nos dois anos anteriores.
Cristina, surfando na onda da recuperação econômica pilotada pelo cônjuge com o auxílio de um cenário externo favorável, impôs à segunda colocada, Elisa Carrió, a maior margem de pontos na Argentina pós-ditadura. A fratura do país parecia superada.
Números, no entanto, muitas vezes são enganosos, como bem sabem os Kirchner. Afinal, foi manipulando os índices da inflação que conseguiram manter alto o superávit fiscal primário.
Acreditando no mito da própria onipotência, o casal presidencial forçou a mão em março. Sem poder contar com receitas extraordinárias que ajudaram a equilibrar as contas nos últimos anos, promoveu um aumento das alíquotas sobre exportação de grãos a níveis que o próprio Roberto Lavagna, ex-ministro de Kirchner responsável pela entrada desses tributos em vigor, qualificou de confiscatórios.
O aumento foi a gota d'água para o campo, que já questionava as políticas para o setor que é o dínamo da economia argentina. Na radicalização, saiu perdendo o governo. A popularidade de Cristina despencou para menos de 20%. Acuada, a presidente decidiu, após três meses de impasse, recorrer ao Congresso, para dar "institucionalidade" à medida.
Tarde demais. O tempo e o desgaste diluíram a ampla base que possuía no Legislativo. A vitória na Câmara foi apertada; no Senado, o vice-presidente, Julio César Cobos, usou seu voto de Minerva para desempatar contra a Casa Rosada.
Cobos, ironicamente, foi escolhido também para dar "institucionalidade" à candidatura de Cristina. Arredios a dividir poder, os Kirchner encenaram magnanimidade ao dar o cargo de vice a um político da União Cívica Radical, rival histórica do peronismo. Não passou de aceno: antes mesmo de explicitar a divergência, Cobos já era marginalizado pelo governo por insinuar-se independente demais.
A derrota de Cristina é a derrota de um estilo. Kirchner e a mulher sempre acreditaram em confrontar para conquistar. Tiveram sucesso quando os inimigos não passavam de fantasmas sem chance de se defender, como os remanescentes da última ditadura finda há 25 anos. Fracassaram quando o adversário mostrou poder de mobilização próprio, independente das verbas que o governo usou para cooptar, por exemplo, os piqueteiros, fundamentais para a derrubada de Fernando de la Rúa em 2001.
O tom belicoso do primeiro discurso pós-derrota mostra que Cristina Kirchner não aprendeu a lição. Em sete meses no cargo, viu o céu de brigadeiro da posse turvar-se em crise política, convulsão social e de desaceleração econômica. A manter-se a toada, com mais de três anos de gestão à frente, sobrará tempo para que ela e o marido dinamitem tudo o que construíram desde 2003.


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