São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os mais pobres entre os pobres

PATRUS ANANIAS


Vamos realizar em outubro uma contagem das populações em situação de rua de 60 cidades com mais de 300 mil habitantes


A EXCLUSÃO assume muitas formas e se expõe em muitos lugares. Mas, aumentando a carga dramática da situação, não raro esse problema passa despercebido aos olhos de uma parcela da sociedade até que se torne uma espécie de "incômodo".
Isso aconteceu, por longos períodos de políticas excludentes da história brasileira, em relação à formação de uma substancial população com trajetória de rua nos grandes centros urbanos. São pessoas a quem não resta nada e que buscam em praças, ruas e avenidas as mais variadas formas de sobrevivência, dependendo da vontade alheia e, muitos, ainda convivendo com graves problemas de alcoolismo, sofrimento mental, violência.
Por muito tempo foram tratados como invisíveis. À medida que o contingente de pessoas nessa situação tomou volume, a sociedade passou a clamar por uma solução rápida.
Num primeiro momento, a reação mais conservadora e descompromissada foi a de "jogar" o problema para frente, resultando em atitudes higienistas em relação à cidade. Infelizmente vamos encontrar resquícios dessa prática vergonhosa.
Mas houve, sobretudo a partir do final dos anos 1980 e início dos anos 1990, boas experiências em prefeituras durante administrações mais sensíveis à questão social e que imprimiram novas perspectivas ao assunto.
Nós mesmos tivemos oportunidade de vivenciar isso em Belo Horizonte, quando assumimos a prefeitura e iniciamos, com a Pastoral de Rua, um trabalho com os catadores de papel que resultou na criação da Asmare (Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável), que hoje é uma referência nacional e reconhecida internacionalmente.
Antes, esses trabalhadores enfrentavam todo tipo de desassossego, incluindo incêndios criminosos a galpões em que o material era estocado e muitos deles dormiam. Hoje, nenhum trabalhador ligado à Asmare vive na rua. Todos os filhos estudam.
Eles conquistaram cidadania e lutam com propriedade por seus direitos.
Não podemos permitir que os mais pobres entre os pobres sejam ainda mais humilhados. A rua é um espaço público e deve ser valorizado como tal. É um espaço de todos, local de encontro, do exercício da cidadania, do convívio pessoal de pobres e ricos.
Retirar as pessoas da rua significa oferecer a cada uma delas alternativas de vida, oportunidades de trabalho, de moradia, condições de formar e manter estruturada uma família.
É inadmissível expulsá-las para outros lugares de nenhumas esperanças e longe dos olhos de pessoas insensíveis ao sofrimento de seus semelhantes. É um trabalho que implica grandes desafios: resgatar a auto-estima e a dignidade de cada pessoa.
O tema é das grandes cidades, mas pede uma solução nacional na perspectiva de integração de políticas para atingir o problema como um todo.
No governo federal, estamos envolvidos na formulação de uma política nacional para esse segmento, sempre na linha de políticas públicas com caráter republicano, em parceria com os governos estaduais e municipais e buscando a participação de entidades da sociedade. Já realizamos, por exemplo, convênios com a Cáritas e com a Organização do Auxílio Fraterno (OAF).
Para combater a falta de informações sobre quem é a população de rua, um dos entraves à formulação de um política nacional, vamos realizar em outubro uma contagem das populações em situação de rua de 60 cidades com mais de 300 mil habitantes.
O objetivo é formular, a partir do estudo, políticas nacionalmente articuladas para esse público, construindo iniciativas que contribuam para a inclusão dessas pessoas. É a primeira vez que o governo federal realiza esse tipo de levantamento que, até então, foi feito, por iniciativa de governos municipais em Belo Horizonte, no Recife e em São Paulo.
"Que ao menos os mais ricos saibam que os pobres estão à sua porta e esperam os sobejos dos festins", conclama o papa Paulo 6º na encíclica "Populorum Progressio", sobre o desenvolvimento dos povos, escrita em 1967, apresentando a questão social ao mundo a partir da constatação do problema da desigualdade: "Os povos da fome se dirigem hoje, de modo dramático, aos povos da opulência".
Para alcançar o ideal de desenvolvimento integral e integrado, precisamos ter os olhos atentos a tantas faces da exclusão, sobretudo aos que, dentre os que mais precisam, são os mais pobres entre os pobres. Resgatando os ensinamentos do padre Lebret, "o que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até chegar à humanidade inteira". Sempre na linha da opção preferencial pelos pobres.

PATRUS ANANIAS , 55, advogado, é o ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Foi prefeito de Belo Horizonte (1993-1996).

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