São Paulo, Terça-feira, 19 de Outubro de 1999
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Vacinação: o papel da auto-suficiência

ISAIAS RAW

Transcorreu, com sucesso, mais um dia anual de vacinação, idéia inventada no Brasil e imitada em muitos países. O resultado se deve à organização e ao fornecimento das vacinas pelo Ministério da Saúde e a uma iniciativa de 15 anos: o Programa Nacional de Auto-Suficiência em Imunobiológicos.
Esse programa surgiu quando se constatou que os soros contra animais venenosos produzidos no Brasil por laboratórios públicos e algumas empresas privadas era inadequado e não poderia ser substituído por importação. Descartando os soros impróprios para uso, a produção do Instituto Butantan, que mantinha 2.000 cavalos, caiu para apenas 32 mil ampolas/ano (o tratamento exige de quatro a dez ampolas). Para enfrentar a emergência, o ministério financiou a construção de novas plantas de produção. O Butantan decidiu investir em inovação tecnológica, implantando uma das mais modernas e maiores fábricas de soros, que produz 180 mil ampolas por ano, com apenas 200 cavalos, além de quase 60 milhões de doses de vacina.
A vacinação de 1999 foi totalmente coberta com a vacina tríplice do Butantan, hoje considerada uma das melhores do mundo. Além de 16,5 milhões de doses da vacina tríplice (difteria, tétano e coqueluche), produzimos 34 milhões de doses da vacina tétano-difteria para os idosos. Estamos fornecendo boa parte da vacina contra tuberculose (BCG) e raiva, além dos primeiros 5 milhões de doses contra hepatite B. Essa vacina era vendida a US$ 8, o que tornava impossível a imunização de crianças. O Brasil tem cerca de 4 milhões de pacientes com hepatite B. Muitos, depois de dispendiosa hospitalização, vão morrer por falência ou câncer de fígado. Para erradicar a doença temos que vacinar, além de recém-nascidos, com três doses, 60 milhões de jovens e adultos. Esse projeto está sendo viabilizado com a vacina fornecida a US$ 0,55.
Há cinco anos, numa reunião em Kyoto, um representante de uma grande produtora de vacinas perguntou por que o Terceiro Mundo deveria produzi-las. Lembrei que décadas antes Foster Dulles havia no mesmo local perguntado por que o Japão pretendia produzir automóveis quando a indústria norte-americana poderia fornecê-los melhores e mais baratos!

A vacinação de 1999 foi totalmente coberta com a vacina tríplice do Butantan

Numa combinação de benemerência, tática de negócios e tentativa de criar monopólio, algumas empresas se dispuseram a fornecer vacinas para os países menos desenvolvidos a preço especial. A vacina tríplice, vendida nos EUA a US$ 8, passou a ser fornecida a US$ 0,07. Mas as empresas já estão recuando, deixando os países pobres em situação difícil. O Instituto Butantan tem fornecido ao ministério não ao preço internacional, mas a preço aproximado do "subsidiado".
O impacto do programa não pode ser medido pela simples substituição de importações e criação de empregos. Há o desenvolvimento de competência tecnológica, que não ocorre nas bancadas de laboratórios, mas na produção de fato. Hoje o Butantan dispõe do maior laboratório de desenvolvimento de biotecnologia para a saúde, com 27 doutores e experiência comprovada em criar e implantar novas tecnologias. Associados ao Instituto Adolfo Lutz e à Fiocruz, estamos completando o desenvolvimento de uma nova vacina contra a meningite BC (a existente não vacina crianças de menos de 4 anos, as mais sujeitas à doença). Colaboramos também com a Fiocruz no desenvolvimento da vacina contra a esquistossomose.
O Butantan lançará até 2001 a vacina quádrupla (DPT-hepatite B) e se associará à Fiocruz para produzir a vacina pêntupla (tríplice-hepatite B-hemófilos B). Também lança em breve a nova vacina contra raiva e no próximo ano inicia a produção da vacina contra influenza, um tipo de gripe (que, apesar de não eliminar a doença, evita internações custosas e a morte de idosos). Só essa iniciativa reduzirá o custo da vacina dos idosos à metade. Em 2000 o Butantan passa a exportador de soros e vacinas.
Com a experiência acumulada produziremos, a preços muito menores do que os do mercado internacional, o surfatante pulmonar (que pode salvar milhares de prematuros), a eritropoietina (essencial para pacientes renais aguardando transplante) e a toxina botulínica (usada em estrabismo e para eliminar contraturas), que se somam ao soro antibotúlico e aos soros que combatem a rejeição de transplantes. Basta comparar o orçamento do setor de produção do Butantan (R$ 2 milhões e 180 funcionários da divisão de produção, menos do que quando nada produzíamos) com o valor do produto -ridículo em relação ao do mercado, que neste ano chegará a R$ 14 milhões-, mais a geração de uma centena de empregos diretos (pagos pelo fornecimento de soros e vacinas), para verificar que não há subsídio público.
Bem ao contrário, parte desses recursos retorna ao Butantan, permitindo desde manutenção até financiamento de contrapartida para pesquisas científicas básicas e atividades culturais, recuperando o prestígio deste instituto, que chega ao centenário. Como Roberto Campos citou na Folha, "não é função do governo fazer um pouco pior ou melhor o que outros podem fazer, e sim fazer o que ninguém pode (ou quer) fazer" (lorde Keynes).


Isaias Raw, 72, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) e presidente da Fundação Butantan. Foi diretor do Instituto Butantan (1991-97) e professor visitante do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (1971-73) e da Universidade Harvard (1973-74).


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