São Paulo, terça-feira, 19 de outubro de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Aventura subimperial

Lavro protesto contra uma insensatez que ameaça virar uma tragédia: nossa intervenção no Haiti. Um governo que posa de independente enviou ao Haiti força expedicionária como gesto de submissão. A título de resguardar a paz, sob a orientação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, essa força opera como guarda pretoriana para defender regime de facínoras, odiado no Haiti e instalado sob os auspícios do governo dos Estados Unidos, depois da derrubada do presidente constitucional eleito. Quase solitária, sem os reforços prometidos por outros países e enfrentando situação que afunda em anarquia e violência, a tropa brasileira arrisca a vida por uma causa que desonra o Brasil e desrespeita as Forças Armadas.
A razão básica pela qual o governo brasileiro cometeu esse erro foi o desejo de fazer média com os americanos. Na seqüela da encalacrada do Iraque e na expectativa das eleições nos Estados Unidos, o governo americano, já escaldado no Haiti, não se dispunha a expor-se outra vez. Encontrou no governo brasileiro quem faria por ele. Quatro condições facilitam a aceitação, por nosso governo, do papel que se lhe atribuiu.
A primeira condição é a lógica secreta de nossa política exterior atual: lógica de compensações e de imposturas. As homenagens espalhafatosas a Fidel Castro e a Hugo Chávez e os protestos inócuos contra as injustiças da ordem global são compensadas por bajulações sorrateiras e rendições discretas ao poder que conta.
A segunda condição é a obsessão em conquistar assento permanente no Conselho de Segurança. Para quê? Para brigar com os Estados Unidos? Ou para fazer-lhes a vontade?
A terceira condição é o que está por trás da segunda: uma idéia de projeção nacional que é conveniente porque é vazia. Formados e bem-sucedidos sob a ditadura, muitos dos que hoje figuram no primeiro escalão de nossa diplomacia aderiram a uma idéia de projeto externo que, em vez de servir a projeto interno forte, serve para ocultar a falta dele. Projeto externo sem projeto interno descamba em combinação de mercantilismo pontual com jogo de prestígio. Não presta numa democracia. Não convém ao Brasil.
A quarta condição é o maquiavelismo minúsculo e míope que prolifera quando a política exterior não faz parte da discussão nacional. Imaginando obter muito por pouco, confiantes que não se identificariam no Brasil os interesses a que tramavam servir no Haiti, e sabedores de que entre os que iriam a Porto Príncipe não estariam seus próprios filhos, julgaram irresistível o golpe de esperteza.
Como observou, porém, o cardeal Richelieu, os mais espertos costumam ser logrados em primeiro lugar. O castigo já começou. Que em vez de recair sobre nossos soldados, recaia sobre os homens que empenharam as vidas de outros e a honra do Brasil numa aventura subimperial. Que a força brasileira deixe já o Haiti. Que o presidente da República e seus auxiliares sejam responsabilizados, agora e no futuro, por esse ataque desferido contra nossas tradições diplomáticas e militares, nossos interesses duradouros e nossa personalidade nacional. E que instauremos debate sobre as diretrizes que devem pautar a política exterior brasileira até chegar o dia -oxalá próximo- em que o Brasil terá estratégia e projeto.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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