São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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O médico

RAUL CUTAIT


Na sua essência, o exercício da medicina é poético e enleva. Na prática, existem percalços. Mas o amor pela profissão prevalece

PARA ENTENDER o presente da medicina é preciso voltar um pouco ao passado, mais precisamente ao século 5º a.C., quando Hipócrates ousou ir contra a crença milenar de que as doenças eram castigos dos deuses e afirmou que eram fenômenos regidos pela natureza. Ele definiu, dessa forma, que a medicina era ciência, e não religião.
Hipócrates fez mais ainda pela medicina, ao deixar claro que seu objetivo maior era o bem do paciente, ao estimular o exercício da medicina baseado no conhecimento, embora reconhecendo as limitações circunstanciais para exercê-lo, e ao estabelecer princípios comportamentais e éticos para o médico, que incluíam o respeito à vida, ao paciente e a sua família.
Ao longo dos séculos, a missão do médico foi sendo gradativamente moldada: curar, paliar e prevenir as doenças, além de ajudar os pacientes a mitigar seu sofrimento físico ou emocional, por meio de uma relação calcada na competência e confiança.
O fato é que a medicina traz para quem a ela se dedica um quê de mágica, por integrar ciência com arte, vida com morte, sofrimento com alegria, esperança com desalento, saúde com doença, pessoas com pessoas.
Os médicos, ao conviver com os mistérios do corpo e da mente, sentem-se continuamente desafiados pela natureza, que, de forma caprichosa, esconde seus segredos, permitindo que sejam desvendados somente gota a gota.
O chamamento para a medicina vem de dentro, motivado pela vontade de ajudar o próximo, pela curiosidade de entender o corpo humano, pelo fascínio de poder lidar com a vida. Utilizar de forma adequada as informações, muitas das quais efêmeras, as novas tecnologias e os novos medicamentos requer conhecimento e experiência. Contudo, focar o doente com doença, e não o contrário, requer sabedoria.
O jovem, ao optar pela medicina, pode antever uma vida com dignidade, mais pelo respeito que a atividade gera do que pelos futuros ganhos, até porque, nos tempos atuais, mais da metade dos médicos brasileiros sobrevive de forma mal remunerada com três a quatro empregos.
O jovem médico deve entender que seu tempo não será seu, mas compartilhado com seus pacientes e familiares; que sua vida será de dedicação, com cansaço, mas, muito provavelmente, de satisfação e sem tédio; que a contínua busca da atualização científica será parte integrante de seu cotidiano.
Verá a sociedade como um todo respeitá-lo, não tanto por sua titulação, mas em especial pelo que fizer em prol de seus pacientes.
E esse jovem médico, quando atingir a velhice, muito provavelmente estará contando casos antigos com o entusiasmo de quem começa.
Na sua essência, o exercício da medicina é poético e enleva. Na prática, existem percalços: baixa remuneração, excesso de horas de trabalho, insatisfação por não poder atender seus pacientes pelas limitações impostas pelo sistema de saúde (público ou privado), necessidade de atualização constante.
Mas, pelo que testemunho em minhas experiências universitária, pública e privada, o amor pela profissão prevalece. Assim, rendo minhas homenagens a meus colegas que, independentemente das adversidades, honram sua missão e seu juramento hipocrático.


RAUL CUTAIT, 58, cirurgião gastrenterologista, é professor associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP, membro da Academia Nacional de Medicina e presidente do Instituto para o Desenvolvimento da Saúde. Foi secretário da Saúde do município de São Paulo (gestão Paulo Maluf).

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