São Paulo, quarta-feira, 19 de dezembro de 2001

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ANTONIO DELFIM NETTO

O Itamaraty e a Alca

As discussões no Congresso Americano sobre a TPA (Trade Promotion Authority), vulgarmente conhecida como "fast track", que autoriza a transferência de poder para o Executivo negociar acordos comerciais, mostra a profunda diferença institucional entre os EUA e o Brasil. No Brasil, a Constituinte de 1988 estabeleceu alegremente (art. 84, inciso VIII) que compete "privativamente ao Presidente da República celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos ao referendo do Congresso Nacional". O papel do Congresso (art. 49, inciso I) limita-se a ratificar ou a rejeitar o ato, não podendo emendá-lo. Nos EUA, o Congresso dá sua autorização e impõe limitações às negociações do Executivo.
Na Câmara dos EUA, aprovou-se, por um voto, o "fast track", com graves limitações ao poder Executivo: ele não deve enfraquecer a legislação antidumping; deve negociar com cuidado itens sensíveis (quase 300) na área agrícola americana; não pode limitar o poder do Congresso de sustentar programas de estímulo à produção e exportação agrícolas; não pode negociar sobre cítricos e açúcar. Por outro lado, é instruído para forçar a eliminação de restrições dos parceiros aos investimentos americanos e negociar o ajuste, aos seus padrões, da legislação de propriedade industrial dos parceiros. No Senado, parece que vão acrescentar ainda maiores restrições: obediência às regras ambientais (enquanto os EUA se recusam a cumprir o tratado de Kyoto!) e insistência na modificação das regras da OMC que não atendem aos interesses americanos. De todas as instruções, a mais fantástica é a sugestão da criação de um mecanismo de consulta para analisar "desvalorizações competitivas". Isso mostra a extravagância e a prepotência a que se pode chegar quando se supõe ter o poder absoluto.
Para propostas tão absurdas, nada como uma resposta absurda! A Comissão de Relações Exteriores da nossa Câmara propôs o "repúdio ao que foi aprovado na Câmara dos EUA e que o Brasil se retire das negociações da Alca". No mesmo dia, o plenário da nossa Câmara aprovou a sugestão. Mais razoável, certamente, foi a resposta do Itamaraty, que, pela voz do ilustre ministro das Relações Exteriores, disse mansamente que "o Brasil reagirá de forma simétrica ou recíproca contra possíveis restrições americanas às negociações". A posição firme e clara do Itamaraty foi com relação à estapafúrdia proposta de misturar a taxa de câmbio (formada livremente no mercado) com os problemas comerciais.
Um cínico examinando superficialmente essa questão chegaria a uma conclusão diferente da colocada na Câmara. Não somos nós que não queremos negociar, são os EUA (como revela a chantagem de um único voto) que não querem o Brasil na ALCA (ou o querem de joelhos). Os impedimentos para negociar são exatamente aqueles a que se referiu o presidente Fernando Henrique em seu discurso em Seattle.


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.


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