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TENDÊNCIAS/DEBATES
Saber tradicional
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA
O Brasil vai entregar à Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi) um documento assinado há pouco em São Luís (MA) por representantes e pajés indígenas e que trata da proteção dos direitos intelectuais
das populações tradicionais: a Carta de
São Luís, que resultou de uma reunião
convocada pelo Inpi e pela Funai.
Como deve ser estimulado e protegido o conhecimento tradicional? Como
garantir equidade e assegurar a continuidade do saber tradicional? Não há
respostas simples. Quanto à equidade, é
injusto o sistema atual: empresas -sobretudo, mas não exclusivamente- estrangeiras apropriam-se de conhecimentos tradicionais sem que os grupos
que os produziram participem adequadamente dos eventuais benefícios. Engana-se quem acha que basta reconhecer propriedade intelectual coletiva de
grupos tradicionais sobre seus saberes.
O saber tradicional, descrito na Convenção da Diversidade Biológica (CDB)
como incluindo conhecimentos, práticas e inovações, não é um simples repositório de conhecimentos do passado. É
um modo de produzir inovações e
transmitir conhecimentos por meio de
práticas específicas. "O que é tradicional
no saber tradicional não é sua antiguidade, mas a maneira como ele é adquirido e usado", diz a CDB.
Mesmo para quem não queira admitir
que o saber tradicional seja um valor em
si, resta a escolha: recolher em uma safra única (supondo que a coisa seja possível) os conhecimentos acumulados
até agora ou pensar também no que se
pode produzir e inovar daqui para a
frente. Um problema é, portanto, o da
equidade. Como garantir que populações tradicionais participem dos benefícios eventuais que podem resultar dos
seus conhecimentos?
Há uma disparidade flagrante entre o
respeito internacional à propriedade intelectual que a OMC impõe a todos os
seus membros e a ausência de respeito
pelo domínio público alheio. Vigoram
dois pesos e duas medidas nos EUA a
respeito do que deve ser considerado
conhecimento de domínio público. Se
interno aos EUA, basta testemunho
oral. Mas, se externo, é necessário o registro escrito. Embora as razões apresentadas pelo Serviço de Patenteamento
dos EUA sejam simplesmente de ordem
prática, de fato, coloca-se o ônus da prova na vítima da espoliação, quem menos tem condições de satisfazê-la.
Ora, os EUA, que souberam impor a
internacionalização do seu sistema de
propriedade intelectual (aqui vale lembrar que, até 1891, os EUA pirateavam
direitos autorais ingleses), recusam-se a
internacionalizar o domínio público. Os
registros de conhecimentos que estão
sendo feitos em alguns países, como no
Peru e na Índia, e que têm suas virtudes,
atendem a essa exigência esdrúxula.
Mas há outras maneiras de a combater.
Para reverter o ônus da prova, uma
exigência importante é que cada invenção ou produto para os quais se solicitem direitos intelectuais em qualquer
parte do mundo exiba a sua história.
Caso tenha utilizado conhecimento tradicional, deverá mostrar como o adquiriu e exibir a prova do consentimento
informado da população que o cedeu.
O saber tradicional não é um simples repositório de conhecimentos do passado. É um modo de produzir inovações
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Muitas indústrias não vão diretamente às populações, e sim aos bancos de
dados que já existem ou à literatura
científica; outras recolhem plantas medicinais nos mercados das cidades da
região e, assim, dissociam os conhecimentos de sua origem.
Os registros em si, que são instrumentos importantes, devem ser manejados
com cuidado. Certamente não podem
ser a única prova. Ninguém -nem nenhum grupo- deve ser obrigado a registrar conhecimentos para ter seus direitos intelectuais reconhecidos. Tão ou
mais efetiva do que qualquer outra medida é a de pôr à disposição das populações tradicionais contratos-padrão e
um grupo de advogados que as ajudem
a negociar contratos. No Peru, o sucesso
dos aguaruna em sua negociação com a
Monsanto-Searle se deveu a isso. Na
Carta de São Luís, reivindica-se o treinamento de advogados indígenas.
Outro dado importante para uma negociação equitativa é conhecer a participação real do saber tradicional na indústria farmacêutica, de cosméticos, de
defensivos agrícolas e de sementes, ou
seja, saber quanto essas indústrias economizam usando pistas fornecidas por
conhecimentos tradicionais. Esse é um
segredo bem guardado, mas que países
como o nosso deveriam se empenhar
em investigar, pois a indústria farmacêutica movimenta, com produtos derivados de recursos genéticos, pelo menos US$ 75 bilhões anuais; a indústria
de sementes, uns US$ 30 bilhões; e uns
US$ 60 bilhões anuais são movimentados por produtos derivados de recursos
genéticos em outros campos. Essas estimativas provêm de pesquisadores de
um dos maiores bancos genéticos do
mundo, o Jardim Botânico de Londres.
Por outro lado, a continuidade da
produção do saber é uma questão ainda
mais vasta. Tem razão a Carta de São
Luís ao declarar: "Nossos conhecimentos da biodiversidade não se separam de
nossas identidades, leis, instituições,
sistemas de valores e da nossa visão cosmológica como povos indígenas".
O saber tradicional se exerce e enriquece a partir de um habitat. Direitos
sobre a terra são, portanto, condição
"sine qua non" de sua continuidade.
Eles são exercidos por meio de instituições próprias a cada grupo, fundamentalmente diferentes daquelas do mundo
industrial contemporâneo. Não é forçoso nem conveniente que se adaptem ao
regime de direitos intelectuais de hoje.
A figura da propriedade intelectual se
firmou no século 18 e é também específica de uma organização social e de uma
época. É "sui generis". O problema é como articular com ela (sem que tenham
de se fundir nela) todas essas outras formas igualmente "sui generis".
A Carta de São Luís defende as idéias
da livre circulação de conhecimentos e
de uma política de ciência tradicional
com estímulo à pesquisa indígena, a
programas de preservação de diversidade genética "in situ" e com outras sugestões inovadoras. O Brasil toma iniciativas importantes na esfera internacional,
mas deixa no limbo as leis domésticas,
como a do acesso a recursos genéticos e
conhecimentos tradicionais e o novo estatuto das sociedades indígenas. O Brasil saiu atrasado nesse assunto, mas dá
mostras de querer se recuperar.
Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga,
doutora pela Unicamp, é professora da Universidade de Chicago (EUA).
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