São Paulo, quarta-feira, 19 de dezembro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Saber tradicional

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

O Brasil vai entregar à Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi) um documento assinado há pouco em São Luís (MA) por representantes e pajés indígenas e que trata da proteção dos direitos intelectuais das populações tradicionais: a Carta de São Luís, que resultou de uma reunião convocada pelo Inpi e pela Funai.
Como deve ser estimulado e protegido o conhecimento tradicional? Como garantir equidade e assegurar a continuidade do saber tradicional? Não há respostas simples. Quanto à equidade, é injusto o sistema atual: empresas -sobretudo, mas não exclusivamente- estrangeiras apropriam-se de conhecimentos tradicionais sem que os grupos que os produziram participem adequadamente dos eventuais benefícios. Engana-se quem acha que basta reconhecer propriedade intelectual coletiva de grupos tradicionais sobre seus saberes.
O saber tradicional, descrito na Convenção da Diversidade Biológica (CDB) como incluindo conhecimentos, práticas e inovações, não é um simples repositório de conhecimentos do passado. É um modo de produzir inovações e transmitir conhecimentos por meio de práticas específicas. "O que é tradicional no saber tradicional não é sua antiguidade, mas a maneira como ele é adquirido e usado", diz a CDB.
Mesmo para quem não queira admitir que o saber tradicional seja um valor em si, resta a escolha: recolher em uma safra única (supondo que a coisa seja possível) os conhecimentos acumulados até agora ou pensar também no que se pode produzir e inovar daqui para a frente. Um problema é, portanto, o da equidade. Como garantir que populações tradicionais participem dos benefícios eventuais que podem resultar dos seus conhecimentos?
Há uma disparidade flagrante entre o respeito internacional à propriedade intelectual que a OMC impõe a todos os seus membros e a ausência de respeito pelo domínio público alheio. Vigoram dois pesos e duas medidas nos EUA a respeito do que deve ser considerado conhecimento de domínio público. Se interno aos EUA, basta testemunho oral. Mas, se externo, é necessário o registro escrito. Embora as razões apresentadas pelo Serviço de Patenteamento dos EUA sejam simplesmente de ordem prática, de fato, coloca-se o ônus da prova na vítima da espoliação, quem menos tem condições de satisfazê-la.
Ora, os EUA, que souberam impor a internacionalização do seu sistema de propriedade intelectual (aqui vale lembrar que, até 1891, os EUA pirateavam direitos autorais ingleses), recusam-se a internacionalizar o domínio público. Os registros de conhecimentos que estão sendo feitos em alguns países, como no Peru e na Índia, e que têm suas virtudes, atendem a essa exigência esdrúxula. Mas há outras maneiras de a combater.
Para reverter o ônus da prova, uma exigência importante é que cada invenção ou produto para os quais se solicitem direitos intelectuais em qualquer parte do mundo exiba a sua história. Caso tenha utilizado conhecimento tradicional, deverá mostrar como o adquiriu e exibir a prova do consentimento informado da população que o cedeu.


O saber tradicional não é um simples repositório de conhecimentos do passado. É um modo de produzir inovações
Muitas indústrias não vão diretamente às populações, e sim aos bancos de dados que já existem ou à literatura científica; outras recolhem plantas medicinais nos mercados das cidades da região e, assim, dissociam os conhecimentos de sua origem.
Os registros em si, que são instrumentos importantes, devem ser manejados com cuidado. Certamente não podem ser a única prova. Ninguém -nem nenhum grupo- deve ser obrigado a registrar conhecimentos para ter seus direitos intelectuais reconhecidos. Tão ou mais efetiva do que qualquer outra medida é a de pôr à disposição das populações tradicionais contratos-padrão e um grupo de advogados que as ajudem a negociar contratos. No Peru, o sucesso dos aguaruna em sua negociação com a Monsanto-Searle se deveu a isso. Na Carta de São Luís, reivindica-se o treinamento de advogados indígenas.
Outro dado importante para uma negociação equitativa é conhecer a participação real do saber tradicional na indústria farmacêutica, de cosméticos, de defensivos agrícolas e de sementes, ou seja, saber quanto essas indústrias economizam usando pistas fornecidas por conhecimentos tradicionais. Esse é um segredo bem guardado, mas que países como o nosso deveriam se empenhar em investigar, pois a indústria farmacêutica movimenta, com produtos derivados de recursos genéticos, pelo menos US$ 75 bilhões anuais; a indústria de sementes, uns US$ 30 bilhões; e uns US$ 60 bilhões anuais são movimentados por produtos derivados de recursos genéticos em outros campos. Essas estimativas provêm de pesquisadores de um dos maiores bancos genéticos do mundo, o Jardim Botânico de Londres.
Por outro lado, a continuidade da produção do saber é uma questão ainda mais vasta. Tem razão a Carta de São Luís ao declarar: "Nossos conhecimentos da biodiversidade não se separam de nossas identidades, leis, instituições, sistemas de valores e da nossa visão cosmológica como povos indígenas".
O saber tradicional se exerce e enriquece a partir de um habitat. Direitos sobre a terra são, portanto, condição "sine qua non" de sua continuidade. Eles são exercidos por meio de instituições próprias a cada grupo, fundamentalmente diferentes daquelas do mundo industrial contemporâneo. Não é forçoso nem conveniente que se adaptem ao regime de direitos intelectuais de hoje.
A figura da propriedade intelectual se firmou no século 18 e é também específica de uma organização social e de uma época. É "sui generis". O problema é como articular com ela (sem que tenham de se fundir nela) todas essas outras formas igualmente "sui generis".
A Carta de São Luís defende as idéias da livre circulação de conhecimentos e de uma política de ciência tradicional com estímulo à pesquisa indígena, a programas de preservação de diversidade genética "in situ" e com outras sugestões inovadoras. O Brasil toma iniciativas importantes na esfera internacional, mas deixa no limbo as leis domésticas, como a do acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais e o novo estatuto das sociedades indígenas. O Brasil saiu atrasado nesse assunto, mas dá mostras de querer se recuperar.


Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga, doutora pela Unicamp, é professora da Universidade de Chicago (EUA).


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