|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOÃO SAYAD
Talento
Há conservadores e progressistas, "esclarecidos" ou "atrasados".
Conservadores esclarecidos temem
e respeitam a fragilidade das instituições e das relações entre humanos.
São depressivos.
Progressistas esclarecidos são gente
com fé no diálogo e indignação com o
estado das coisas. São ansiosos.
Ambos podem ser de direita ou de
esquerda. Qual a diferença entre esquerda e direita?
Na porta da igreja de santo Estevão,
que Kennedy freqüentava, em Washington, um padre chinês esperava os
fiéis na porta. Um pouco tenso, distribuía questionários de avaliação: "Fala
de forma compreensível?"; "Esclarece
o texto do Evangelho?"; "Olha para os
fiéis ao falar?".
Evangelho segundo são Mateus, capítulo 25: antes de viajar, o patrão dá
5.000 talentos (dinheiro da época) para um empregado tomar conta, 2.000
para outro e 1.000 para um terceiro.
Na volta, os empregados prestam contas. Os dois primeiros dobraram o capital recebido. O terceiro enterrou o
dinheiro e devolveu a quantia original.
O patrão se congratula com os dois.
Pergunta ao terceiro as razões dos
maus resultados. A resposta é malcriada: "O senhor é conhecido por colher
onde não plantou. Cauteloso, enterrei
o dinheiro num buraco". O patrão retrucou que, sabendo disso, deveria ter
depositado dinheiro num banco, para
que o capital fosse aumentado. Condenou-o a prisão em caverna escura.
Parábola difícil, ainda mais para o
padre tão jovem. O patrão parece CEO
de um banco de investimento distribuindo bônus para traders. A parábola não condena a usura, pois o empregado cauteloso foi punido.
O sacerdote chinês falou num inglês
incompreensível. Explicou que cada
um de nós recebe talentos de Deus e
que nossa missão é multiplicar e produzir bons frutos a partir dos talentos
recebidos. A exegese é ortodoxa (vencedora), tanto que o sentido da palavra talento, habilidade inata ou adquirida, é originário dessa parábola e dessa interpretação.
Os brasileiros da minha geração vestiriam imediatamente a carapuça da
bronca do patrão, segundo essa leitura. Recebemos um grande país cruel
que crescia; deixaremos um país cruel
que não cresce.
É possível ler de outra forma: o caminho certo é deixar o talento (dinheiro) no banco. A Galiléia do ano
100 d.C. pagava uma boa taxa de juros.
No frio do outono, quase final do
ano litúrgico, já era impossível lembrar do verão. Na Washington de
Bush, é impossível lembrar de Kennedy. Diversos tempos do passado se
cruzaram no domingo -padre chinês, avaliação empresarial de desempenho na semana em que o Fed aumentou os juros e um texto de quase
2.000 anos lido da mesma forma.
A homilia do padre chinês pode esclarecer o que são direita e esquerda.
Direita é quem lê o texto de uma única
forma que vira mandamento ou lei. A
esquerda relê, e a cada leitura escreve
de novo. Direita são os fariseus, os donos dos textos.
Respondi o questionário com caridade: pronúncia claríssima, inglês impecável. Há gente de esquerda que é
de direita. E gente de direita que é de
esquerda. Continuo desorientado.
Melhor ler de novo.
João Sayad escreve às segundas-feiras nesta coluna.
@ - jsayad@attglobal.net
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Bola dividida Próximo Texto: Frases
Índice
|