São Paulo, segunda-feira, 19 de dezembro de 2005

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JOÃO SAYAD

Talento

Há conservadores e progressistas, "esclarecidos" ou "atrasados".
Conservadores esclarecidos temem e respeitam a fragilidade das instituições e das relações entre humanos. São depressivos.
Progressistas esclarecidos são gente com fé no diálogo e indignação com o estado das coisas. São ansiosos.
Ambos podem ser de direita ou de esquerda. Qual a diferença entre esquerda e direita?
Na porta da igreja de santo Estevão, que Kennedy freqüentava, em Washington, um padre chinês esperava os fiéis na porta. Um pouco tenso, distribuía questionários de avaliação: "Fala de forma compreensível?"; "Esclarece o texto do Evangelho?"; "Olha para os fiéis ao falar?".
Evangelho segundo são Mateus, capítulo 25: antes de viajar, o patrão dá 5.000 talentos (dinheiro da época) para um empregado tomar conta, 2.000 para outro e 1.000 para um terceiro. Na volta, os empregados prestam contas. Os dois primeiros dobraram o capital recebido. O terceiro enterrou o dinheiro e devolveu a quantia original.
O patrão se congratula com os dois. Pergunta ao terceiro as razões dos maus resultados. A resposta é malcriada: "O senhor é conhecido por colher onde não plantou. Cauteloso, enterrei o dinheiro num buraco". O patrão retrucou que, sabendo disso, deveria ter depositado dinheiro num banco, para que o capital fosse aumentado. Condenou-o a prisão em caverna escura.
Parábola difícil, ainda mais para o padre tão jovem. O patrão parece CEO de um banco de investimento distribuindo bônus para traders. A parábola não condena a usura, pois o empregado cauteloso foi punido.
O sacerdote chinês falou num inglês incompreensível. Explicou que cada um de nós recebe talentos de Deus e que nossa missão é multiplicar e produzir bons frutos a partir dos talentos recebidos. A exegese é ortodoxa (vencedora), tanto que o sentido da palavra talento, habilidade inata ou adquirida, é originário dessa parábola e dessa interpretação.
Os brasileiros da minha geração vestiriam imediatamente a carapuça da bronca do patrão, segundo essa leitura. Recebemos um grande país cruel que crescia; deixaremos um país cruel que não cresce.
É possível ler de outra forma: o caminho certo é deixar o talento (dinheiro) no banco. A Galiléia do ano 100 d.C. pagava uma boa taxa de juros.
No frio do outono, quase final do ano litúrgico, já era impossível lembrar do verão. Na Washington de Bush, é impossível lembrar de Kennedy. Diversos tempos do passado se cruzaram no domingo -padre chinês, avaliação empresarial de desempenho na semana em que o Fed aumentou os juros e um texto de quase 2.000 anos lido da mesma forma.
A homilia do padre chinês pode esclarecer o que são direita e esquerda. Direita é quem lê o texto de uma única forma que vira mandamento ou lei. A esquerda relê, e a cada leitura escreve de novo. Direita são os fariseus, os donos dos textos.
Respondi o questionário com caridade: pronúncia claríssima, inglês impecável. Há gente de esquerda que é de direita. E gente de direita que é de esquerda. Continuo desorientado. Melhor ler de novo.


João Sayad escreve às segundas-feiras nesta coluna.
@ - jsayad@attglobal.net


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