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TENDÊNCIAS/DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
A ira das vinhas
CRISTINE CONFORTI
Na confluência contemporânea entre homem e álcool, o embate talvez só possa ser evitado por meio da educação
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"Ora, vindo a faltar o vinho, diz a mãe de
Jesus para ele: "Não têm mais vinho"."
(João 2,3)
A CONSTATAÇÃO não se restringe à sociedade brasileira: o
consumo excessivo de álcool
cada vez mais cedo é de âmbito global.
Em São Paulo, as noites de sexta a
domingo testemunham multidões de
jovens consumidores em suas baladas
à alegria. Abastecem-se e aquecem-se
nos postos de gasolina e supermercados, espalham-se brindando pelas
ruas e calçadas vizinhas a casas noturnas e lotam os bares. Há as festas e raves, que só freqüentamos perplexos
por meio de relatos dos filhos. Mesmo
a planilha de inocentes churrascos
calcula a quantidade de cerveja multiplicando-se o número de pessoas por
dúzias, em vez de unidades.
Não fora a associação com o carro,
que agride o direito à vida e pode tornar motoristas em homicidas, talvez
tivéssemos tolerado a embriaguez
precoce como o mal do novo século. O
debate está instaurado, é legítimo e
importa que não se arrefeça assim
que se perder o impacto da novidade.
Porém, esse movimento, tal como é
exposto pela mídia, pode permanecer
no rodapé do problema. A análise tende ao tipo digital (sim/não) e opinativo (concordo/não concordo). É imprescindível introduzir consistência
e argumentos mais complexos, na
tentativa de desenhar um projeto não
exclusivo da lei e da pena, mas que interaja com princípios de outra ordem.
A vida de cada um e a de todos se
nutre de planos direcionados ao futuro, mas o que nos permite compreender a realidade e sustentar tais projetos é o apoio no passado, na história
humana que nos gerou e na cultura
que nos constitui. A tradição hebraico-cristã, por exemplo, modelou padrões e valores que os presentes sucessivos se encarregam de rechaçar
ou confirmar, reinterpretar e transfigurar em hábito, moral e poesia.
O primeiro milagre de Jesus, de
acordo com o Evangelho de João, foi
transformar água em vinho, a pedido
de Maria, para que as bodas em Caná
pudessem cumprir seu ritual de alegria. Deve haver na literatura bíblica
críticas à embriaguez; mas em suas
páginas também cabe o elogio ao prazer de viver, amar e compartilhar
simbolizado pelo vinho do Cântico
dos Cânticos e da Santa Ceia.
Do sábio sabor do brinde ao retrato
caricato dos excessos, séculos de arte
traduzem o melhor e o pior das ações
humanas, mais que do álcool. Este
contracena com a fragilidade do homem, com sua inquietação e liberdade, sua graça e desespero. Depois da
segunda dose -diz a anedota-, qualquer um começa a sentir-se interessante; depois da terceira, crê plenamente em sua capacidade de decidir e
continuar dirigindo.
Houve épocas e sociedades em que
a tradição esteve apta a oferecer referências, fronteiras e respostas. Esta,
em que vivemos, carece de certezas:
nem fé, nem razão, nem cidadania estabilizam o desencanto nos valores e
o mal-estar coletivo.
É uma sociedade logicamente inconsistente, construída sobre contradições sem síntese possível. É permissiva e superprotetora com crianças e jovens, o que adia a autonomia e
a responsabilidade; a moeda corrente
é o excesso, enquanto prega a virtude
da temperança; cria necessidades e as
descarta rapidamente; reitera o bordão do sucesso a qualquer preço e não
ensina a frustração; declara a meta da
felicidade coletiva e suprime que viver é viver a dificuldade; apela à força
das leis e dos deveres como recurso
para o caos e as adapta à interpretação individual plena de direitos.
Na confluência contemporânea entre homem e álcool -essa droga lícita
e cultural-, o embate talvez só possa
ser evitado por meio da educação.
Educar é a possibilidade limite da humanização. Ela prevê norma e restrição, mas acredita, sobretudo, na razão
e na construção do livre pensar.
O homem é feito de interrogações
perenes, que buscam sentido e certeza, que por sua vez se afastam ou se
refazem em novas perguntas.
Essa condição inquieta e livre impõe ao educador procedimentos de
formação da consciência, e não apenas da contenção externa.
Não há dúvidas de que as regras asseguram as condições para a socialização e o aprendizado; mas deve haver uma construção interna de valores, capaz de criar uma pessoa convicta, cujas ações são uma adesão livre ao
convívio e à coletividade. A consciência implica essa adesão de dentro para
fora, e tal processo é lento.
A força da lei e suas sanções detêm
a transgressão, mas, sozinhas, não
consolidam uma ética. Não parece
eficaz impedir sem motivar, sem
orientar e permitir a escolha com base em um ideal de vida e sociedade.
Jovens precisam sobrevoar sozinhos o espaço próximo de seus ninhos, discutir sua experiência e questionar a de seus pais e pares, para poder crescer e alçar com menor risco
altitudes e longitudes novas.
CRISTINE CONFORTI, mestre e doutora em educação pela USP, é diretora do colégio Santa Cruz, de São Paulo
(educação infantil e ensino fundamental 1).
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