São Paulo, terça-feira, 20 de janeiro de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Soco em cara de americano

Se os brasileiros não sentíssemos o peso da humilhação nacional, se não desejássemos, com tanto ardor secreto e desorientado, ver o país ficar de pé, se não julgássemos intolerável o grau de dependência dos Estados Unidos em que o Brasil caiu, não teríamos apreciado com mal disfarçado espírito de vingança (também chamado de reciprocidade) a identificação de visitantes americanos e a prisão do piloto desaforado. Humano, humano demais.
O sentimento da humilhação pode abrir ou fechar caminhos. Quando, por exemplo, no final do século 19, a China começou a reagir contra as indignidades a que a sujeitavam as potências ocidentais, as emoções mobilizadas ajudaram a inspirar movimentos que desembocaram em república e revolução. No Brasil de hoje, ocorre, por enquanto, o inverso. Os gestos de revide -bem mais custosos para os mandantes do que para os destinatários- servem de compensação para nossas abdicações. É como se disséssemos: já que os endinheirados comemoram o sepultamento da idéia de uma alternativa nacional pela agremiação política que supostamente a representava, já que a nação continua indiferente à cooptação das forças capazes de contestar as opções retrógradas do atual governo, já que a mensagem do Brasil para a humanidade ficou reduzida a usar lamentações a respeito das injustiças da globalização para tentar arrancar pequenas vantagens para nossos exportadores, já que a Alca, embora encolhida, bate à porta, já que, enfim, tudo isso custa tão caro, material e moralmente, ao povo brasileiro, que tal dar soco em cara de americano? Pagando tanto para nos render, por que não pagarmos um pouco mais para usufruir o prazer momentâneo da desforra?
Mais clarividente e corajoso seria reconhecer o problema de fundo nesses episódios miúdos: a movimentação internacional dos brasileiros em particular e das pessoas em geral. Formado como país de imigração, o Brasil não consegue se imaginar como o país de emigração que hoje, por conta da estagnação econômica e da opressão social, de fato é. Algumas centenas de milhares de brasileiros já trabalham ilegalmente nos Estados Unidos. Centenas de brasileiros correm nas caladas da noite na fronteira do México com o Texas, tentando escapar da falta de oportunidade e da falta de respeito no Brasil. Enquanto isso, nossos orfanatos continuam abarrotados de crianças (muitas abandonadas pelos pais) que os brasileiros não adotamos nem deixamos estrangeiros adotar. Preferimos aprisioná-las e escondê-las de nós mesmos a permitir que estrangeiros façam por elas o que não fazemos.
Essa problemática nos remete a tema vital para a humanidade. Nenhuma reforma da ordem global surtiria maior efeito igualizador e daria contribuição maior ao despontar de consciência humana universal do que o fortalecimento gradativo do direito das pessoas de se movimentarem pelo mundo e de trabalharem onde quiserem. Nossos interesses materiais e morais mais profundos estão empenhados nessa causa. O Brasil deve estar à frente dela, aproveitando as oportunidades que os fatos não cessarão de produzir. Uma dessas resulta da transformação dos Estados Unidos pelos fluxos migratórios, refletida na proposta do governo americano de facultar licenças temporárias de trabalho aos imigrantes ilegais.
Para reorientar o debate nacional nessa direção e enfrentar essas realidades, não basta brigar na esquina. É preciso ter grandeza -ou querê-la.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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