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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Soco em cara de americano
Se os brasileiros não sentíssemos o peso da humilhação nacional, se não desejássemos, com tanto
ardor secreto e desorientado, ver o
país ficar de pé, se não julgássemos intolerável o grau de dependência dos
Estados Unidos em que o Brasil caiu,
não teríamos apreciado com mal disfarçado espírito de vingança (também
chamado de reciprocidade) a identificação de visitantes americanos e a prisão do piloto desaforado. Humano,
humano demais.
O sentimento da humilhação pode
abrir ou fechar caminhos. Quando,
por exemplo, no final do século 19, a
China começou a reagir contra as indignidades a que a sujeitavam as potências ocidentais, as emoções mobilizadas ajudaram a inspirar movimentos que desembocaram em república e
revolução. No Brasil de hoje, ocorre,
por enquanto, o inverso. Os gestos de
revide -bem mais custosos para os
mandantes do que para os destinatários- servem de compensação para
nossas abdicações. É como se disséssemos: já que os endinheirados comemoram o sepultamento da idéia de
uma alternativa nacional pela agremiação política que supostamente a
representava, já que a nação continua
indiferente à cooptação das forças capazes de contestar as opções retrógradas do atual governo, já que a mensagem do Brasil para a humanidade ficou reduzida a usar lamentações a respeito das injustiças da globalização
para tentar arrancar pequenas vantagens para nossos exportadores, já que
a Alca, embora encolhida, bate à porta, já que, enfim, tudo isso custa tão
caro, material e moralmente, ao povo
brasileiro, que tal dar soco em cara de
americano? Pagando tanto para nos
render, por que não pagarmos um
pouco mais para usufruir o prazer
momentâneo da desforra?
Mais clarividente e corajoso seria reconhecer o problema de fundo nesses
episódios miúdos: a movimentação
internacional dos brasileiros em particular e das pessoas em geral. Formado
como país de imigração, o Brasil não
consegue se imaginar como o país de
emigração que hoje, por conta da estagnação econômica e da opressão social, de fato é. Algumas centenas de
milhares de brasileiros já trabalham
ilegalmente nos Estados Unidos. Centenas de brasileiros correm nas caladas da noite na fronteira do México
com o Texas, tentando escapar da falta
de oportunidade e da falta de respeito
no Brasil. Enquanto isso, nossos orfanatos continuam abarrotados de
crianças (muitas abandonadas pelos
pais) que os brasileiros não adotamos
nem deixamos estrangeiros adotar.
Preferimos aprisioná-las e escondê-las de nós mesmos a permitir que estrangeiros façam por elas o que não fazemos.
Essa problemática nos remete a tema vital para a humanidade. Nenhuma reforma da ordem global surtiria
maior efeito igualizador e daria contribuição maior ao despontar de consciência humana universal do que o
fortalecimento gradativo do direito
das pessoas de se movimentarem pelo
mundo e de trabalharem onde quiserem. Nossos interesses materiais e
morais mais profundos estão empenhados nessa causa. O Brasil deve estar à frente dela, aproveitando as
oportunidades que os fatos não cessarão de produzir. Uma dessas resulta
da transformação dos Estados Unidos
pelos fluxos migratórios, refletida na
proposta do governo americano de facultar licenças temporárias de trabalho aos imigrantes ilegais.
Para reorientar o debate nacional
nessa direção e enfrentar essas realidades, não basta brigar na esquina. É
preciso ter grandeza -ou querê-la.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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