São Paulo, terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

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Baco, Eros e Caos

RAYMUNDO PARANÁ


Aglomerados urbanos como o Carnaval baiano formam um cenário propício da disseminação de doenças transmissíveis


NESTES dias, Salvador sedia a maior festa do planeta. O Carnaval baiano tem a sua explicação perseguida por sociólogos, antropólogos, teólogos, mas nada consegue racionalizar tão complexa composição étnica, racial, cultural e social, sumarizada alquimisticamente como Carnaval baiano. O resultado de tudo isso é uma explosiva festa que a alguns encanta, mas para outros escandaliza.
Destarte as tentativas de explicações racionais para a irracionalidade dessa manifestação social, o Carnaval é realmente uma festa gigantesca e culturalmente rica. São milhões de indivíduos que ali buscam extravasar a sua alegria ou as suas tristezas travestidas. Muitos comemoram vitórias para esquecer as suas frustrações, outros simplesmente se divertem.
Certamente que, em tempos de grandes epidemias, aglomerados urbanos gigantescos como esse formam um cenário propício da disseminação de doenças transmissíveis, mormente quando faltam informação e educação aos seus participantes. Numa festa em que se ingerem alimentos do mesmo lugar onde se urina e em que as instalações sanitárias, por mais que tenham melhorado nos últimos tempos, são incapazes de atender à demanda do público, pode-se imaginar que mínimas regras de higiene não são implementadas.
É dentro desse contexto que proliferam as doenças de transmissão hídrica. Vírus e bactérias que se instalam no tubo digestivo e causam as conhecidas gastroenterites, ou seja, as temidas diarréias que muitas vítimas ainda fazem neste país.
A ingestão de água de procedência duvidosa ou de alimentos expostos às altas temperaturas são as principais razões da disseminação dessas doenças. Bactérias como Salmonela e Shiguella proliferam rapidamente nessas condições. Já vírus de transmissão hídrica, como rotavírus, norwalk e o vírus da hepatite A, estão vinculados à água e aos alimentos crus, como as frutas e as hortaliças, sempre expostas ao longo do magnífico cortejo.
As primeiras semanas que sucedem o Carnaval são marcadas pelo aparecimento das hepatites virais do tipo A, já conhecidas pelos colegas que atuam nos hospitais de doenças infecciosas. Logo em seguida aparecem as doenças sexualmente transmissíveis. No Brasil, apesar da excelente campanha para o controle do HIV, ainda existem forças negativas, até religiosas, que, criminosamente, se contrapõem à educação sexual clara e transparente, omitindo a importância do sexo responsável.
Na festa de Baco, Eros será sempre convidado. A liberalidade sexual que marca esta década acaba facilitando a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis. Dentre elas destacam-se o Papiloma vírus, a sífilis, a gonorréia e a hepatite B, além do HIV.
Todas essas doenças podem ser evitadas com o uso da camisinha, além de outras práticas pertinentes ao sexo seguro. Essas medidas se fundamentam na informação clara ao público leigo, ou seja, somente se sedimentam se a educação sexual utilizar uma linguagem que possa ser compreendida pelo povo.
Esforços isolados como o da Fiocruz, com o seu tradicional bloco da camisinha, em muito ajudam a quebrar as resistências, a desmistificar a indesejada intromissão religiosa nesse assunto e, sobretudo, a aproximar a comunidade científica do povo que financia as pesquisas em saúde. Essas iniciativas são válidas, mas ainda insuficientes para clarear a realidade quanto aos riscos de transmissão dessas doenças.
Nessa complexa festa também será impossível impedir a presença de Caos. Está presente todos os anos na forma anárquica com que o nosso povo aprendeu a viver num país cujo Estado costuma ser omisso e injusto. Inconscientemente, o povo expressa a sua revolta social agravada pela falta de paradigmas.
A crise de paradigmas e a perda de valores sociais e morais consolidam o desexemplo. Esse cenário nada contribui para que tenhamos um povo ordeiro e pacífico. Aliás, pacífico até que somos, mas numa festa com as características do Carnaval, a explosão da revolta é inevitável e esta se faz na desfaçatez da violência.
O Carnaval retrata a injusta sociedade brasileira. Nos camarotes concentra-se a pequena elite dominante. Como os senhores feudais, estão nababescamente alojados no alto, protegidos, longe dos riscos dessa festa mundana. Lá só se contraem as doenças se muito descuido houver. Nos blocos de cordas encontram-se os foliões da classe média. Também protegidos, brincam de ter o seu dia de povo, sem se dar conta de que são eles os que realmente financiam a festa, com os abadás comprados a peso de ouro. São o espelho dos contribuintes do fisco brasileiro.
Fora da corda encontram-se aqueles mais vulneráveis às peças pregadas por Baco, Eros e Caos. Infelizmente, são a maioria do nosso povo e, por isso, são também as principais vítimas dos infortúnios carnavalescos.
Por isso não considero o Carnaval baiano a festa mais democrática do planeta. Apenas penso que ela se reflete exatamente o que somos como nação.

RAYMUNDO PARANÁ , 47, médico hepatologista, doutor em medicina pela Universidade Federal da Bahia, é professor livre-docente de hepatologia clínica da UFBA.


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