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TENDÊNCIAS/DEBATES
Battisti e... Obama!
GIUSEPPE COCCO
Fechar feridas dos anos 70, reconhecer a sua dimensão política e, portanto, a do caso Battisti é essencial para o futuro da democracia
OS CRIMES atribuídos a Cesare
Battisti datam de mais de 30
anos. Mas são tratados como
se tivessem acontecido ontem.
Apareceu até um pequeno pelotão
de supostos finos conhecedores da
realidade italiana para sustentar que
seus "crimes" não seriam políticos,
pois a Itália seria então, como hoje
é, uma democracia; que a repressão
à luta armada da década de 1970,
esquerdista ou direitista, teria sido
feita dentro do marco da Constituição, sem leis especiais.
A vasta literatura de crítica às leis
de "emergência" desenvolvida por
juristas de porte internacional -como Luigi Ferrajoli e Alessandro
Baratta- é simplesmente ignorada.
Mas o que mais impressiona é a
mistura de "palpites" sobre a história
italiana e as definições policialescas
do conceito de democracia.
"Depois de 20 anos de fascismo, os
italianos, em 1948, elegeram o modelo republicano. A partir daí a Itália
passou a viver democraticamente",
escreveu Wálter Maierovitch nesta
Folha (7/2/2009). Ora, o referendo
que escolheu a república data de 2
de junho de 1946. Ao mesmo tempo,
antes do fascismo, a Itália já era uma
democracia (monarquia constitucional), e Mussolini -aliás, como Hitler- chegou ao poder pelas vias e
mecanismos daquela democracia.
Mais importante: o "depois do fascismo" não foi fruto de eleições; foi
uma conquista que passou pela guerra e pela luta armada. A data de referência na Itália é justamente o 25
de abril de 1945, "festa da libertação
do fascismo", quando a Resistência
e a população insurrecta ocuparam
a cidade de Milão.
Cabe aqui perguntar: uma luta armada contra as ameaças do fascismo,
na democracia dos anos 1920, não teria sido legítima? Não poderia ter
conseguido evitar 20 anos de ditadura, os lutos da guerra e a vergonha das
leis raciais e da deportação dos judeus italianos? Não teria faltado, na
democracia italiana dos anos 1920,
uma luta capaz de barrar o fascismo e
assim consolidar a democracia mediante a sua renovação?
Também nesta Folha (12/2/2009)
podemos ler que, em 1948, a nova
Carta Constitucional entrou em vigor
e, a partir de então, "a Itália é uma
República democrática". Pedro Del
Picchia parece não saber que 1948 é
também o ano do atentado contra
Togliatti, líder do Partido Comunista.
Por dois dias, quase toda a Itália do
norte esteve sob controle das forças
comunistas e da população insurrecta, à beira de uma guerra civil que só
foi evitada pelos apelos do próprio
Togliatti. Del Picchia ignora também
que a Constituição democrática italiana sempre co-habitou com um
emaranhado de leis e instituições fascistas: o Código Penal Rocco, o "concordato" entre Estado e Vaticano, o
seguro-desemprego não-universal.
Já com esses poucos elementos,
podemos ver que as dimensões formais da democracia italiana foram
consolidadas pelas lutas dos que as
conquistaram, defenderam e renovaram, com risco da própria vida -fosse
contra os fascistas, os ocupantes nazistas ou as forças de polícia dos governos da Democracia Cristiana que
não hesitavam em usar, nos anos
1950, as milícias mafiosas (o "bandido" Giuliano) para massacrar camponeses sem terra.
E, nos anos 1960 e
1970, os atentados "de Estado", bem
no estilo do que no Brasil foi feito no
Riocentro e foi tentado no Gasômetro do Rio. O Brasil era uma ditadura;
a Itália, uma democracia. A Guerra
Fria, no entanto, era uma só!
A potência da democracia -nos ensinam os grandes constitucionalistas- não está na obediência, mas no
direito à revolta. Para afirmar a Constituição, "foram necessários protestos e luta, nas ruas e nos tribunais,
por meio de uma guerra civil e da
desobediência civil". Não é um slogan
de Battisti, mas um discurso Barack
Obama na Filadélfia (18/3/2007), na
trilha de Thomas Jefferson.
Hoje mesmo, os direitos dos trabalhadores estrangeiros na Itália não
são protegidos pela Constituição formal, mas dependem das ruas, quer dizer, da capacidade de mobilização social, por exemplo, contra ou a favor a
nova lei que obriga os médicos italianos a denunciar os imigrantes ilegais.
Os erros políticos da luta armada
na Itália dos anos 1970 não cancelam
a evidência de que o conteúdo democrático da democracia dependia e depende da vitalidade dos movimentos.
A repressão dos movimentos significou o enfraquecimento da democracia italiana e o desaparecimento da
esquerda: a xenofobia no poder!
Fechar as feridas da década de 1970,
reconhecer a dimensão política daqueles eventos e, portanto, a do caso
Battisti é fundamental para o futuro
da democracia, na Itália e alhures.
GIUSEPPE COCCO , 53, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre outras
obras, escreveu, com Antonio Negri, o livro "Glob(AL):
Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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