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TENDÊNCIAS/DEBATES
O filme "A Paixão de Cristo" tem conteúdo anti-semita?
SIM
Um filme anticristão
JACOB PINHEIRO GOLDBERG
Acho desnecessário, pela obviedade, provar que o filme é anti-semita, digno de Mel Gibson, que se
afirmou orgulhoso do pai, que negou o
Holocausto. Mas é oportuno provar seu
anticristianismo agressivo.
Trata-se da versão hollywoodiana da
maior contrafacção política e ideológica
da história, a inteligente e hábil manobra de atribuir aos judeus a culpa da
condenação de Jesus à morte. Como essa fórmula primária, que qualquer criminalista seria capaz de desmistificar,
tem resistido a estudos e análises?
Em primeiro lugar, explica-se pelo anti-semitismo disseminado pelos cultores da nova religião, interessada em bloquear as fronteiras com sua fonte originária. Em segundo lugar, a uma natural
e apaixonada resistência judaica, indignada diante do apoderamento de seu filho, transformado, contra sua vontade,
em instrumento de ódio e perseguição.
Em abono desta tese poderíamos transcrever inúmeras passagens do Novo
Testamento. Inútil. Ou o leitor percebe
que, numa vida de 30 e poucos anos, Jesus dedicou todos os seus momentos
conhecidos à tarefa do estudo da Torá e
dos preceitos religiosos do judaísmo,
como antes e depois fizeram milhares
de rabinos e eruditos pregadores, ou escolhe a via tortuosa do sadomasoquismo anti-semita, que se prende ao drama
arquitetado pelos dominadores romanos nas suas últimas horas.
Na verdade, na figura de Jesus, foi crucificado na época o espírito de insurreição religiosa e política de Israel, provavelmente com a cumplicidade de alguns
elementos engajados com o conquistador. Nos dois milênios que se sucederam, os judeus têm sido castigados pela
trágica herança de haverem concebido
um filho mágico e dileto, de espírito
universalmente aberto. Provavelmente,
uma das grandes horas da história será
o instante da reversão da dinâmica de
Jesus. De seus versículos proferidos, de
todas as passagens vividas por Jesus,
Yeoshua bem Yossef, transpira sua
apaixonada adesão ao judaísmo, seu
entranhado amor ao seu povo e sua
mensagem de libertação.
O processo de seu deslocamento começa no desenvolvimento produzido
por Pilatos, a reconciliação e o reconhecimento de sua função como judeu, o
apagar do tônus anti-semita, que procura retratá-lo como estranho ao seu povo, a final trama desmentida pelo senso
comum de seu papel, como messias para os cristãos, como filho querido para
os judeus. Quem instruiu, magistralmente, a necessidade dessa revisão foi o
poeta libanês Khalil Gibran, no seu diálogo entre Jesus de Nazaré e Jesus dos
cristãos, que, segundo ele, ainda não tinham conseguido se conciliar. Fonte
histórica de Jesus, o judaísmo perdeu
para o cristianismo institucionalizado
seu poder político e social, que permitiu
à nova religião dar o tônus da civilização
ocidental.
No entanto, nas últimas décadas, e
destacando-se o pensamento de figuras
como João 23, Tomas Merton e Jacques
Maritain, acentua-se um processo de judaização do pensamento cristão de algumas áreas mais esclarecidas. Do lado
judaico, tal inclinação se adivinha na
análise de Jesus feita por Joseph Klausner. No estudo "A Morte de Deus e o
Futuro da Teologia", Gallagher afirma
que devemos nos rejubilar "não por
qualquer coisa que é, mas por aquele
que virá". Dificilmente a noção judaica
do messias poderia ter uma melhor categorização do que esta.
Na medida em que o cristianismo passa pelo mergulho introspectivo do
abandono das imagens greco-romanas
e penetra no "pathos" e no "ethos" de
Jesus, o rabi judeu, a mansidão e o amor
à vida se irão contrapor ao martírio da
paranóia. Obviamente, a dialética de
uma crise de consciência e revisão totalizante desse alcance não se fará suavemente, eis que vai abalar toda a teologia
do sofrimento -interno e externo, expresso na mecânica da agressividade-
das cruzadas, do ódio ao prazer, da tendência à abstinência, do conceito brutal
de salvação de todo o gênero humano e,
finalmente, da própria concepção da estrutura religiosa como instituição.
Talvez este será o mais formidável paradoxo da história: vencidos os bloqueios psicológicos, o anti-semitismo
terá ensejado a mea culpa, que conduzirá a elite do pensamento filosófico cristão à aceitação do judaísmo. Porque
nesse jogo, como na vida, quem perde
ganha. Não se pode esquecer de que a
cruz era um suplício romano, não um
instrumento da justiça judaica. Jesus foi
executado pelos romanos, na missão de
dominação política, como agitador. A
acusação ao judeu de ser o assassino de
Cristo foi uma lenda divulgada pela
propaganda romana, na Diáspora.
Depois dos Manuscritos do Mar Morto, estudar Jesus não é tarefa para a
construção da desavença. Judeu, estudei no Instituto Grambery, Colégio Metodista, em Juiz de Fora, onde nasci. Lá
começou a revelação, para mim, de que
Jesus não morreu -ao contrário do
que imagina Gibson. Ele vive com os
cancerosos, os miseráveis, os abandonados, órfãos e viúvas. Mas também na
alegria, na esperança, na fé. Sente-se a
paixão de Jesus no silêncio, na introspecção do seu sacrifício. Na vitória da
vida sobre a morte, do amor sobre a raiva. O filme de Gibson é a recrucificação
de Jesus por US$ 200 milhões.
Jacob Pinheiro Goldberg, psicanalista, é doutor em psicologia pela Universidade Mackenzie e
professor convidado pela Uniwersytet Jagiellonski (Cracóvia, Polônia).
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