São Paulo, sexta-feira, 20 de abril de 2007

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JOSÉ SARNEY

A vítima, essa esquecida

NO DIA SEGUINTE ao da promulgação da Constituição de 88, 6 de outubro de 1988, o doutor Saulo Ramos, então meu consultor-geral da República, brilhante jurista e conhecedor profundo de direito constitucional, entrou em minha sala na Presidência da República e disse-me, com um ar brincalhão: "Esta Constituição vai ser um maná para nós, os advogados: os tribunais ficarão entupidos de ações". Em seguida, mostrou-me um texto, o inciso LXI do art. 5º: "Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei".
"Ora", dizia ele, "a partir de hoje, ninguém pode ser preso neste país para ser investigado". E me esclareceu mais ainda: "Veja esta outra preciosidade: "a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada'; e mais, "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado"."
O criminoso, desse modo, tem todos os direitos, e a vítima, aquela que sofreu o ato criminoso, não merece nenhuma menção nesse artigo 5º, que trata dos direitos fundamentais. Foi jogada para a vala comum, remetida pelo último artigo da Constituição a uma lei infraconstitucional.
No mundo inteiro, hoje, existe legislação que assegura direitos às vítimas, e há inclusive uma resolução da ONU nesse sentido. Considero que o desrespeito e a falta de humanidade para com aqueles que são trucidados pela violência e insegurança que existem no país vêm a ser um estimulador da própria violência. Se os criminosos e a sociedade, o Estado e as autoridades olhassem o drama humano de quem perde um pai, um filho, de quem fica paralítico para vida inteira, olhassem os destinos que se acabam, talvez não se cometessem tantas atrocidades. Mas, ao contrário, só quem tem direito é o criminoso, o homicida. E as vítimas ficam no esquecimento e só merecem notícia quando são objeto de sensacionalismo.
Apresentei um projeto de lei para proteger as vítimas de violência e suas famílias e lutei para que não se admitisse que homicidas se defendessem soltos. Há três anos tramita na Câmara, e -pasmem os leitores- recebeu parecer contrário à sua aprovação. As vítimas clamam por justiça.
Do jeito que está, o Brasil ganha então o título desonroso de país da impunidade, de país protetor de criminosos e de algoz das pobres vítimas.


jose-sarney@uol.com.br

JOSÉ SARNEY
escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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