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Vítimas e vítimas
A sistemática das reparações financeiras por abusos cometidos durante o regime militar merece ser rediscutida
NÃO DEMORA muito, no
Brasil, para que um direito legítimo dê margem a abusos e distorções institucionalizadas.
Surgiu como correta, nos idos
de 2002, a idéia de conceder reparações financeiras às vítimas
dos abusos cometidos durante a
conflagração que dividiu a sociedade nos 20 anos de regime militar. Deveriam fazer jus a essas reparações tanto opositores mortos ou torturados quando se encontravam sob custódia do Estado, como funcionários desse
mesmo Estado assassinados
quando no estrito exercício de
suas obrigações.
Com o passar dos anos, entretanto, foi-se criando uma verdadeira indústria: só de 2005 a
2007, passou de 3.184 para 8.470
o número dos requerimentos deferidos pela comissão. Não se
contam entre os beneficiários
apenas as pessoas submetidas fisicamente às brutalidades do regime, ou as famílias daqueles que
foram mortos pelo simples ato
de defender, pacificamente, seus
ideais políticos.
No caso dos que se engajaram
na luta armada, em tese dispostos a tudo perder, a própria idéia
de uma reparação já teria tudo
para cercar-se de tintas polêmicas; foi liberal, por via das dúvidas, a atitude da comissão.
Esta se revela ainda mais discutível quando, com base nos
prejuízos experimentados por
opositores do regime militar em
sua vida profissional, o cálculo
dos valores retroativos e das
pensões devidas alcança cifras
elevadíssimas.
Não se trata de colocar num
pelourinho moral a percepção
subjetiva de tantas pessoas que,
depois de viverem anos de exposição ao trauma, ao estigma e à
ameaça, pleiteiam o que julgam
ser correto. Cabe à sociedade,
entretanto, ponderar a questão
de outro ponto de vista.
O valor aproximado das reparações concedidas de 2002 a
2007 chega a R$ 2,9 bilhões.
Quanto receberam, em média, as
incontáveis vítimas da negligência do Estado em acidentes de
trânsito, em filas de hospitais do
SUS? Que dizer dos jovens que,
sem nenhum antecedente criminal, foram mortos em chacinas
promovidas pela polícia, ou torturados em delegacias nos mais
diversos pontos do país?
Há entre as próprias vítimas da
guerrilha, como se noticiou, casos de reparação cujo valor foi
mínimo diante do concedido a figuras de destaque da oposição.
Cumpre, sem dúvida, rediscutir o tema. Os casos de morte e
tortura têm uma gravidade que
não se compara ao tipo de prejuízos que, atualmente, inspira tantos pedidos de reparação. Em
muitos desses casos, os danos
alegados são de difícil aferição.
Tampouco caberiam reparações
a quem pegou em armas e pereceu em combate como decorrência de uma opção na qual esse
risco era notório.
A anistia extinguiu a punibilidade dos responsáveis pelos abusos, de ambos os lados, mas não
exime o Estado de reparações financeiras. Estas deveriam se restringir, porém, aos casos de violência física cometida contra
pessoas indefesas no momento
em que a sofreram.
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