São Paulo, segunda-feira, 20 de maio de 2002

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MELCHIADES FILHO

Assim é, se lhe parece

Reza a lenda que o Brasil tricampeão praticou um futebol de puro improviso. A linha Jairzinho, Pelé, Tostão e Rivellino, alimentada por Gérson, encanta até hoje, símbolo de fantasia, de uma "época que não volta mais" aos gramados. A goleada de 4 x 1 sobre a Itália arranca suspiros mesmo de quem jamais a assistiu.
Não se trata de alucinação coletiva. O time foi mesmo fabuloso no México. No entanto, a crônica lhe conferiu atributos imerecidos e subtraiu-lhe outros que merecia.
Na realidade, 1970 viu uma seleção brasileira de inédita sofisticação tática. De modo algum superofensiva, postava-se na defesa, armada para contra-atacar. Lances geniais, como o gol de Carlos Alberto que fechou a vitória do título, nasceram de combinações no vestiário, não de fagulhas de espontaneidade. Os "melhores momentos" da final, reprisados vez ou outra na TV, mascaram 90 minutos mordidos, até maçantes em certos períodos.
Já a Copa seguinte, na Alemanha, carimbou no técnico Zagallo a qualificação de "retranqueiro". Quando, a rigor, ele perdeu para a Holanda com o mesmo sistema de jogo que lhe dera a taça quatro anos antes.
Assim, convencionou-se dizer que, em julho de 1982, o estádio de Sarriá viu a arte sucumbir de vez ao antijogo. Decantada a frustração, quem teve a paciência de rever a partida pôde constatar que o sucesso da Itália no Mundial não foi obra do acaso. Mais equilibrada, a equipe do "sortudo" Paolo Rossi venceu com justiça o Brasil de Telê Santana.
Assim, em 1990, Dunga deu nome a uma "era" de mau futebol. Ainda que o volante, ótimo passador, batesse recordes de eficiência em competições de elite como o Italiano e o Alemão -qualidade que contribuiria para o tetracampeonato em 1994.
Assim, em 2002, faz parte do folclore casseta-e-planetiano a ladainha de que Cafu não sabe cruzar. Ainda que, na Europa, o ala lidere rankings do fundamento, à frente de astros acima-de-qualquer-suspeita como Figo (Portugal) e Beckham (Inglaterra).
No futebol, como nas disputas eleitorais, símbolos costumam valer mais do que fatos. Marqueteiros extraem dos grupos de discussão das pesquisas qualitativas as palavras que levarão à campanha. No esporte, o consenso sai depurado das mesas-redondas da TV, dos papos de boteco, dos esbarrões no recreio escolar.
A Copa do Mundo da Coréia do Sul e do Japão, que começa no dia 31, tende, como nenhuma anterior, a cristalizar percepções.
Devido ao fuso, os jogos ocuparão a faixa entre 2h30 e 10h30, horário de Brasília. Por mais que publicitários, dirigentes e jornalistas cruzem os dedos, menos pessoas assistirão ao evento. Boa parte da torcida só tomará conhecimento das partidas por boletins de telejornais, "gols da rodada" e relatos da imprensa.
A tendência é acentuada porque, neste Mundial, o futebol só estará na Globo -a nave-mãe, na TV aberta, e a filial Sportv, no clube exclusivo da TV paga. Sem cacife, as outras emissoras apenas baterão bumbo.
O Brasil chega à Copa do blablablá com seu pior retrospecto em eliminatórias, como um pré-candidato claudicante que espera surpreender na etapa decisiva.
Mas, no domínio das percepções, a seleção viaja com altos índices de popularidade. Felipão é um técnico de "desempenho homogêneo" nas pesquisas. Hoje, seu bigode bate o de Lula -caiu igualmente no gosto de homens e mulheres, velhos e jovens.


Melchiades Filho é editor de Esporte. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Boris Fausto, que escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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