São Paulo, terça-feira, 20 de junho de 2000


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O ovo do povo


Não se furou a represa, mas aí está o alerta a ser valorizado nas boas escalas Richter dos terremotos políticos


CANDIDO MENDES

Não podemos fugir ao flagrante das costas de José Serra, monumentalmente esparramado o segundo ovo, o semblante malvislumbrado de um dignatário romano, em que a confiança no seu destino político faz-se da resignação ao travo da hora. Mais ainda, do enfrentá-la como fatalidade política democrática, que não lhe emperra o ir adiante, espanada a mossa, mais que limpo o paletó do confronto.
As costas que dá ao entrevero ficam agora como a mais desassombrada resposta tucana ao castigo que parece baixar de muitos deuses. Talvez estejamos ainda mal entrando no período de vacas magras, em que acaba a confiança na inércia neoliberal do regime e do pacto entre o PSDB e o pefelê -que confiou nos amortecedores do velho mito da nação cordial e do povo sem memória.
O sistema já perscruta no ar a praga dos ovos de que o primeiro chuvisco mal esconde o encontro pelo povo do instrumento certo, para refinar a agressão sem dor, mas espalhafatosa, que merece o sistema que só nos promete agora com franqueza o consolo de um jejum temporão das glórias políticas.
Não vamos ao confronto da pedrada, ou dos projéteis, caseiros ou não, de bater, de ferir, que democrático é o sistema, nada fero o príncipe e, afinal, todo agora colhido no estarrecimento da agressão que repudia, tanto mais que anônima, ilocalizável, tanto quanto vinda de todos os cantos possíveis. Não é onda vinda do atiço do governador Covas, varão de Plutarco, cuja honestidade contagia o sistema à sua volta e lhe faz assumir como vindita particular a resposta de um cansaço histórico e difuso dos súditos.
Já apareceram os grão-sacerdotes da interpretação do incidente nefasto, a mostrar o quanto a opinião pública brasileira, nestes meados dos 2000, dilacera-se entre a continuidade do horror à violência e o reconhecimento simultâneo de que como está não dá para ficar.
Não se chuçou ainda o inimigo múltiplo e difuso que segura um ovo depois do outro e sabe onde mira. Não se o provocou, como Collor, tendo o castigo do reverso no plebiscito verde e amarelo que pediu para encontrar o luto nas ruas e o enterro de seu mandato.
Ao contrário da vinheta que nos dá Serra, não faltam, entretanto, já, os dedos no gatilho e o alarme das ameaças de par com os estereótipos do pânico no querer definir o inimigo. Não vamos longe no que se põe a teste da verdadeira democracia se o sociólogo FHC insistir na caça às bruxas poedeiras de ovos ou transpuser os estereótipos das camarilhas, do sovadíssimo discurso da repetição dos bugres do nazismo.
Não se está diante das mãos nada anônimas de uma conspirata. Nem de uma impaciência que marque um partido ou um movimento social. O ovo soube canalizar com calibre perfeito um recado com marca, mas tendo a grife do anonimato do desconforto nacional que encarna. É do mesmo jaez da torta na cara de Michel Camdessus, na mesma elegância de porte e determinação com que Serra recebeu a primeira gema.
O que inquieta é vir a caracterização pânica dos agressores no mesmo veio em que chamaram à defesa de governantes os duendes e ferrabrases da Lei de Segurança Nacional contra os sem-terra. Ali, mais uma vez, de repente, não mais que de repente, quebrou-se uma cadeia profunda de confiança do povão no regime. E que é tanto indelével quanto insuscetível de encontrar os labirintos desse inconsciente popular, onde a escalada do regime pelos vasos comunicantes de uma só e mesma impaciência coletiva põe o ovo na mão do povo.
Observador da grande sutileza, o próprio presidente já nos baixou o cenário do que começou com o primeiro ovo. A relação entre o príncipe e o povo passa hoje pela sociedade do espetáculo, e este não devolve o que incorporou como gesto e script dos governados.
No presságio inevitável, o ovo às carradas vira munição do confronto, inesgotável, reproduzindo-se na mais caseira das economias, tiro doce, mais que as balas de borracha das polícias, e feito para o que quer a sanção dos olhares, no intervalo do voto nas urnas. O perigo vem, sim, do quanto esses nossos varões de Plutarco podem dar-se por legitimamente impunes, com direito à indignação devastadora dos puros. Mas é outro o repasto de que se nutrem os áulicos, e a retórica dos repúdios vem à zona gris da prepotência e da instalação da lei do medo. E, por força, de sua escalada.
Não são velhacos, ou psicopatas, ou baderneiros de extremas, os que trazem o ovo agora à praça e esperam. Não é a vindita de um, mas a cumulação da vigília de muitos desencantos, que correram para um estuário. Não se furou a represa, mas aí está o alerta a ser valorizado nas boas escalas Richter dos terremotos políticos, para avaliar a leveza ainda do estremecimento. Ou, sobretudo, compreender que nem vamos à caça de assassinos em flor. Este não é prélio do sangue e da violência, que é própria dos desatamentos de um mal-estar social transformado em vindicação de desejos e execução de pseudoculpados.
O ministro Serra, sua sobranceria, sua resignação clássica, rasga o cenário por sobre o perigo das escaladas.O ovo não herda o palavrão a Figueiredo nem vai a vias de fato da agressão, em que a vítima seja mais que o representante de um sistema, agredido mais que o povo espera. Enfrente-o o governo, como os sistemas autoritários, ou tente-o pelo gatilho da lei e da ordem e não sairá mais da defensiva nos meses em que nos promete o resgate do emprego e do desenvolvimento. Ou do castigo em toda mudança sôfrega de página, execrados os situacionismos e postos à quarentena de todo risco de contaminar o futuro.


Candido Mendes, 71, é presidente do "senior board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e membro da Academia Brasileira de Letras.



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