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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Gandhi e a economia do hidrogênio

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Com frequência um besteirol começa como utopia. E utopias vicejam em situações de frustração aguda. Assim, o complexo de condições adversas no que diz respeito à disponibilidade de energia em futuro não distante, associado à evidente degradação do meio ambiente provocada pelo consumo abusivo de combustíveis fósseis, constitui o cenário propício à eclosão de utopias e seitas no setor de energia.
É sob esse signo que surge com potência inesperada a "onda do hidrogênio". Aliás, deveríamos dizer "renasce", pois até no Brasil, na Unicamp para ser preciso, experiências com armazenamento de hidrogênio em metais e com células combustíveis já eram realizadas havia pelo menos um quarto de século. Todavia esse novo movimento surge sob a égide de uma seita de estável convicção, o distributivismo.
O mais eminente e consequente representante desse princípio foi o Mahatma Gandhi, que o ilustrou com uma produção caseira do tecido de suas roupas -que, felizmente, eram diminutas. O exemplo de Gandhi deve ser tomado como um saudável conselho para nossa saúde mental e corporal, mas não como uma política tecnológica e industrial.
Como toda religião vigorosa, o princípio fundamentalista do distributivismo na produção renasceu com vigor há exatamente 30 anos, graças ao brilhante livro de E. E. Schumacher "O negócio é ser pequeno" ("Small is Beautifull"). Nessa mesma esteira surgiu, dez anos depois, a profecia de Alvin Toefler, "A Terceira Onda", hoje bastante desacreditada, e outras vieram. O que podemos concluir dessas persistentes manifestações do que chamaremos de impulso distributivista primevo é que ocorrem como reação aos excessos da especialização e consequente concentração de atividades produtivas. E, como tal, são certamente bem-vindas, mas não podem se tornar fundamento de uma civilização urbanizada em que a eficiência se torna o princípio da sobrevivência.
No entanto não podemos deixar de reconhecer que esquemas distributivistas variados, líricas tecnologias apropriadas e outras ilusões são humanizadores e inofensivos. É por esse ângulo benevolente que devemos, por exemplo, avaliar a criação de uma Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social e Tecnológica Apropriada no MCT, contanto que não venha ela a absorver parte significativa do orçamento.
Todavia também é com frequência que oportunistas e charlatões se aproveitam dessa inclinação açucarada do espírito empreendedor. É nesta vertente que surgem os apóstolos da chamada economia do hidrogênio. O mito prevê a substituição do petróleo e da eletricidade na economia mundial pelo hidrogênio. E o profeta maior dessa seita nascente é o economista americano Jeremy Rifkin ("A Economia do Hidrogênio").
Como sempre ocorre nessas ocasiões, a argumentação se vale de uma percepção superficial dos problemas envolvidos e de informações deliberadamente distorcidas. O engodo começa com o subtítulo do livro, a saber, "A criação de uma nova fonte de energia e a redistribuição do poder na Terra". Em várias oportunidades declama o autor que o hidrogênio, além do mais, é o "elemento mais abundante do universo". Acontece que o elemento hidrogênio (H) não é a molécula de hidrogênio, H2. Esta última é combustível, mas só se encontra em quantidades ínfimas. O elemento H, este sim é abundante, mas está ligado quase sempre a outros átomos, formando moléculas ou sólidos. O hidrogênio molecular, H2, que é fonte de energia, é praticamente inexistente, e o hidrogênio elementar combinado a outros átomos, abundante, ou já está em outros combustíveis ou não é fonte de energia.


O hidrogênio terá uma participação na economia da energia, mas não será a panacéia que certos oportunistas proclamam


Rifkin, embora nos alerte brevemente (no cap. 8 de seu livro) de que é preciso gerar o hidrogênio molecular, em suas argumentações mais gerais parece esquecer esse fato fundamental. A única vantagem que o hidrogênio poderá vir a ter sobre a eletricidade é um menor custo de armazenamento. Essa possibilidade existe porque, aparentemente, nesse setor ainda há um certo espaço para desenvolvimento e redução de custos em comparação com o que ocorre com a eletricidade. O hidrogênio se torna atraente, então, para uso em cidades de grande densidade populacional, para transporte em que a saúde deve ser privilegiada a qualquer custo e em sistemas em atividades estratégicas nas quais interrupções breves podem ser catastróficas. Todavia, com a atual pletora de tecnologias utilizadas, a poluição resultante não é reduzida, mas apenas transferida para locais menos frequentados. E essas aplicações são muito limitadas.
Rifkin sugere um esquema em que miniusinas em casas, locais de trabalhos etc. produziriam, por efeito fotovoltaico, eletricidade que serviria para eletrólise da água, com o que se teria o hidrogênio combustível. É claro que esse sistema só começaria a ser interessante quando o custo dessa parafernália, somado ao do armazenamento do hidrogênio, se tornasse inferior ao de baterias elétricas para carga de energia equivalente, o que ainda é um sonho.
Mas nada ilustra melhor a precipitação do profeta Rifkin do que sua proposta para evitar outro apagão no Brasil. Diz ele em entrevista à Folha (16/6/ 03): "Se vocês tivessem conversores para transformar o excedente de energia em hidrogênio, não teriam tido problema". Um cálculo simples mostra que, se alinhássemos reservatórios cúbicos para hidrogênio com a melhor tecnologia existente, de um metro cúbico cada um, com capacidade total para suprir eletricidade durante um ano de seca no Brasil, seria necessário ir à lua e voltar com essa fileira de reservatórios. Ampliar as hidroelétricas, de acordo com o planejamento que o governo FHC não obedeceu, seria infinitamente mais barato.
O hidrogênio terá, por certo, uma participação na economia da energia do futuro, mas não será a panacéia que certos oportunistas proclamam.


Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 71, físico, professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha.


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