São Paulo, sexta-feira, 20 de julho de 2007

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JOSÉ SARNEY

O sortilégio de Congonhas

É DIFÍCIL lidar com a dor. Por isso o criador nos fez com a incapacidade de memorizá-la, sentir de novo. Fica apenas lembrança triste de uma dor passada. Pior ainda ter muitas dores. Dores da tragédia, dores do coração de mães, mulheres, filhos, parentes e amigos. São dores da alma. Na solidariedade incorporamos a dor de todos.
Santo Agostinho dizia que a morte provava a existência da alma. Ao olhar um corpo morto, perguntou: "Onde está sua alma?". Concluiu que saíra e, portanto, existia. De alguma maneira, é a resposta do anjo que estava no sepulcro vazio, ao ver as Marias : "Non est hic (não está aqui)". Estava onde? O padre Vieira responde: "No coração de sua mãe". Não no céu, nem junto a Deus, no coração de sua mãe.
A tragédia de Congonhas colocou todas as vítimas no coração de todos os brasileiros. Não é possível explicar o que não se explica porque não podia ter acontecido. Desde o deflagrar da crise aérea estava em todos nós a temerosa espera de que algo assim acontecesse. E aconteceu.
Os motivos técnicos, humanos, desumanos não interessam mais. Aquele fogo, as vidas, as lágrimas, o luto não se apagam. São anos de erros que chegaram até nós. Construíram aquele aeroporto num lugar vazio. A cidade avançou, os administradores públicos, levados pela especulação imobiliária, cada vez mais aproximaram os arranha-céus. As atitudes municipais não sabiam a revolução dos transportes, da aviação? Foi imprevisão, burrice ou desonestidade? Isso nos remete a imprevidência, incompetência ou irresponsabilidade de algumas gerações. Todas as hipóteses são ruins.
Nunca pousei em Congonhas -algumas vezes na cabine do comandante- sem ter a impressão que pousava num porta-aviões. A diferença é que, em vez de mar, temos a chamada selva de pedra. Calculo o estresse diário dos comandantes naquele corredor de edifícios e a pista com seus estruturais problemas de localização, tamanho e apoio de instrumentos. Montesquieu dizia que muitas leis nenhuma lei. E, hoje, temos tantos órgãos tomando conta (Anac, Decea, Infraero, torres de comando, comando de torres, e mais e mais) que parece que é o caso de não termos nenhum.
Lendo as coincidências: o avião foi explodir na esquina da rua Otávio Tarquínio de Souza, grande historiador, autor da "História dos Fundadores do Império", que morreu num desastre aéreo quando um urubu bateu no avião em que viajava, em cima do Galeão, no Rio. Esse urubu parece que está pousado na aviação brasileira e em seus problemas.

jose-sarney@uol.com.br

JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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