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JOSÉ SARNEY
O sortilégio de Congonhas
É DIFÍCIL lidar com a dor. Por
isso o criador nos fez com a
incapacidade de memorizá-la, sentir de novo. Fica apenas lembrança triste de uma dor passada.
Pior ainda ter muitas dores. Dores
da tragédia, dores do coração de
mães, mulheres, filhos, parentes e
amigos. São dores da alma. Na solidariedade incorporamos a dor de
todos.
Santo Agostinho dizia que a morte provava a existência da alma. Ao
olhar um corpo morto, perguntou:
"Onde está sua alma?". Concluiu
que saíra e, portanto, existia. De alguma maneira, é a resposta do anjo
que estava no sepulcro vazio, ao ver
as Marias : "Non est hic (não está
aqui)". Estava onde? O padre Vieira responde: "No coração de sua
mãe". Não no céu, nem junto a
Deus, no coração de sua mãe.
A tragédia de Congonhas colocou todas as vítimas no coração de
todos os brasileiros. Não é possível
explicar o que não se explica porque não podia ter acontecido. Desde o deflagrar da crise aérea estava
em todos nós a temerosa espera de
que algo assim acontecesse. E
aconteceu.
Os motivos técnicos, humanos,
desumanos não interessam mais.
Aquele fogo, as vidas, as lágrimas, o
luto não se apagam. São anos de erros que chegaram até nós. Construíram aquele aeroporto num lugar vazio. A cidade avançou, os administradores públicos, levados
pela especulação imobiliária, cada
vez mais aproximaram os arranha-céus. As atitudes municipais não
sabiam a revolução dos transportes, da aviação? Foi imprevisão,
burrice ou desonestidade? Isso nos
remete a imprevidência, incompetência ou irresponsabilidade de algumas gerações. Todas as hipóteses são ruins.
Nunca pousei em Congonhas
-algumas vezes na cabine do comandante- sem ter a impressão
que pousava num porta-aviões. A
diferença é que, em vez de mar, temos a chamada selva de pedra. Calculo o estresse diário dos comandantes naquele corredor de edifícios e a pista com seus estruturais
problemas de localização, tamanho e apoio de instrumentos. Montesquieu dizia que muitas leis nenhuma lei. E, hoje, temos tantos
órgãos tomando conta (Anac, Decea, Infraero, torres de comando,
comando de torres, e mais e mais)
que parece que é o caso de não termos nenhum.
Lendo as coincidências: o avião
foi explodir na esquina da rua Otávio Tarquínio de Souza, grande historiador, autor da "História dos
Fundadores do Império", que morreu num desastre aéreo quando
um urubu bateu no avião em que
viajava, em cima do Galeão, no Rio.
Esse urubu parece que está pousado na aviação brasileira e em
seus problemas.
jose-sarney@uol.com.br
JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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