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TENDÊNCIAS/DEBATES
A responsabilidade pela segurança de vôo
RENATO CLÁUDIO COSTA PEREIRA
O complexo sistema de transporte aéreo civil está dividido em 4 estruturas, com 4 cabeças diferentes e muito pouca coordenação
SEMPRE QUE uma comunidade é
atingida por um evento catastrófico, sentimentos de consternação e solidariedade surgem imediatamente. No entanto, na medida em
que esses sentimentos vão sendo
substituídos por um sentimento de
perda, a vontade de entender o que se
passou toma conta das pessoas. Hipóteses são formuladas e, muitas vezes,
a procura de um culpado passa a ser
uma necessidade absoluta.
Um aeroporto é uma instalação
criada para permitir um fluxo de
transporte aéreo -para servir a uma
região e seus centros urbanos-, capaz de prover transporte eficiente e,
sobretudo, seguro às comunidades
que ali vivem e trabalham. É uma ferramenta de desenvolvimento e comunicação entre grupos humanos
que permite integração e intercâmbio
de maneira rápida e confortável.
O aeroporto de Congonhas foi criado, dentro desse espírito, em 1936 e
cresceu procurando atender as necessidades, constantemente crescentes, de São Paulo. Passou por muitas
transformações, mas sempre operando com segurança, dentro das normas
internacionais, preparado para respeitar suas exigências e restrições.
Pessoalmente, acho que, como
qualquer outro aeroporto do mundo,
Congonhas é seguro -desde que operado dentro de suas características,
respeitadas suas condições operacionais e, principalmente, as restrições
determinadas por essas características. Toda operação que não for conduzida assim será uma operação de
risco, colocando desnecessariamente
vidas humanas em perigo.
No caso presente, quando um acidente de proporções tão grandes
aconteceu, é preciso entender em que
essas características e restrições foram desobedecidas.
Possivelmente, as condições da pista recém-reformada, exatamente por
ineficiência do "grooving" (ranhura,
em inglês) -destinado a evitar a
aquaplanagem em condições de chuvas intensas na hora do pouso-, tiveram um peso muito importante. O piloto, ao pousar, pode ter reagido ao
sentir a situação crítica em que estava, tentando corrigi-la, mas as condições da pista podem ter imposto dificuldades além do esperado.
A verdade somente vai aparecer
quando as caixas-pretas permitirem a
reprodução do vôo fatídico em um simulador. Até lá, seria muito importante, para a segurança das operações
em Congonhas, que o aeroporto ficasse restrito a operações com tempo seco até a execução do "grooving",
quando poderia ser liberado para
operações sob chuva, mas sempre
respeitando as demais restrições operacionais que possam existir.
Quanto ao conjunto do complexo
que podemos chamar de sistema de
transporte aéreo civil, ele vem passando por uma transição muito rápida e sem um planejamento adequado.
O Brasil possuía desde 1919 um sistema gerenciado em todos os níveis
por uma só cabeça, o Ministério da
Aeronáutica, conduzido por pessoal
militar da Força Aérea Brasileira. Esse gerenciamento sempre funcionou
bem e permitiu o desenvolvimento de
uma aviação civil eficiente e segura,
dentro do melhor espírito que norteou a criação da Organização da
Aviação Civil Internacional.
Criou também uma indústria aeronáutica que hoje está entre as quatro
maiores e melhores de todo o mundo
e dotou o nosso espaço aéreo com um
dos mais avançados e sofisticados sistemas de controle, que sempre operou com eficiência e segurança, respeitado em todo o mundo.
A partir de uma decisão legítima,
esse sistema complexo foi desmembrado e, agora, sem um planejamento
adequado, está dividido em quatro estruturas (Infraero, Anac, Comando
da Aeronáutica e indústria aeronáutica), com quatro cabeças diferentes e
muito pouca coordenação.
Por falta de investimentos, o sistema de proteção ao vôo sofreu sensível
degradação. Isso, porém, apenas exige maior cuidado nas operações e
uma conseqüente diminuição do fluxo aéreo. O Comando da Aeronáutica
pode enfrentar a situação se tiver recursos e o tempo necessário para aplicá-los nos setores que deles precisam
-desde que tenha autoridade para
gerenciar o sistema sem intervenções
políticas e despreparadas.
Quanto à Anac, creio que uma profissionalização de seus quadros levaria a uma maior coordenação com a
Aeronáutica e a Infraero e a uma
maior eficiência operacional. Mas isso leva um tempo que não deve nem
pode ser imposto de fora para dentro.
Quanto à Infraero, só uma auditoria externa nas suas administrações
poderá esclarecer onde e como seus
recursos foram aplicados.
Se a responsabilidade com a segurança de vôo por parte das autoridades brasileiras for considerada a sério
e o respeito pelos usuários se tornar
uma norma a ser aplicada, poderemos
em um tempo mais curto sair da turbulência e, mesmo com uma administração mais civil, voar em um belo céu
de brigadeiro.
RENATO CLÁUDIO COSTA PEREIRA, 70, é major brigadeiro-do-ar reformado. Foi secretário-geral da Organização da Aviação Civil Internacional por dois mandatos
(1997 a 2003), tendo sido o único brasileiro a ocupar o cargo, e presidente da Comissão Latino-Americana de Aviação Civil por dois mandatos (1992-1996).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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