São Paulo, sexta-feira, 20 de julho de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A responsabilidade pela segurança de vôo

RENATO CLÁUDIO COSTA PEREIRA

O complexo sistema de transporte aéreo civil está dividido em 4 estruturas, com 4 cabeças diferentes e muito pouca coordenação

SEMPRE QUE uma comunidade é atingida por um evento catastrófico, sentimentos de consternação e solidariedade surgem imediatamente. No entanto, na medida em que esses sentimentos vão sendo substituídos por um sentimento de perda, a vontade de entender o que se passou toma conta das pessoas. Hipóteses são formuladas e, muitas vezes, a procura de um culpado passa a ser uma necessidade absoluta.
Um aeroporto é uma instalação criada para permitir um fluxo de transporte aéreo -para servir a uma região e seus centros urbanos-, capaz de prover transporte eficiente e, sobretudo, seguro às comunidades que ali vivem e trabalham. É uma ferramenta de desenvolvimento e comunicação entre grupos humanos que permite integração e intercâmbio de maneira rápida e confortável.
O aeroporto de Congonhas foi criado, dentro desse espírito, em 1936 e cresceu procurando atender as necessidades, constantemente crescentes, de São Paulo. Passou por muitas transformações, mas sempre operando com segurança, dentro das normas internacionais, preparado para respeitar suas exigências e restrições. Pessoalmente, acho que, como qualquer outro aeroporto do mundo, Congonhas é seguro -desde que operado dentro de suas características, respeitadas suas condições operacionais e, principalmente, as restrições determinadas por essas características. Toda operação que não for conduzida assim será uma operação de risco, colocando desnecessariamente vidas humanas em perigo.
No caso presente, quando um acidente de proporções tão grandes aconteceu, é preciso entender em que essas características e restrições foram desobedecidas. Possivelmente, as condições da pista recém-reformada, exatamente por ineficiência do "grooving" (ranhura, em inglês) -destinado a evitar a aquaplanagem em condições de chuvas intensas na hora do pouso-, tiveram um peso muito importante. O piloto, ao pousar, pode ter reagido ao sentir a situação crítica em que estava, tentando corrigi-la, mas as condições da pista podem ter imposto dificuldades além do esperado.
A verdade somente vai aparecer quando as caixas-pretas permitirem a reprodução do vôo fatídico em um simulador. Até lá, seria muito importante, para a segurança das operações em Congonhas, que o aeroporto ficasse restrito a operações com tempo seco até a execução do "grooving", quando poderia ser liberado para operações sob chuva, mas sempre respeitando as demais restrições operacionais que possam existir.
Quanto ao conjunto do complexo que podemos chamar de sistema de transporte aéreo civil, ele vem passando por uma transição muito rápida e sem um planejamento adequado. O Brasil possuía desde 1919 um sistema gerenciado em todos os níveis por uma só cabeça, o Ministério da Aeronáutica, conduzido por pessoal militar da Força Aérea Brasileira. Esse gerenciamento sempre funcionou bem e permitiu o desenvolvimento de uma aviação civil eficiente e segura, dentro do melhor espírito que norteou a criação da Organização da Aviação Civil Internacional.
Criou também uma indústria aeronáutica que hoje está entre as quatro maiores e melhores de todo o mundo e dotou o nosso espaço aéreo com um dos mais avançados e sofisticados sistemas de controle, que sempre operou com eficiência e segurança, respeitado em todo o mundo. A partir de uma decisão legítima, esse sistema complexo foi desmembrado e, agora, sem um planejamento adequado, está dividido em quatro estruturas (Infraero, Anac, Comando da Aeronáutica e indústria aeronáutica), com quatro cabeças diferentes e muito pouca coordenação.
Por falta de investimentos, o sistema de proteção ao vôo sofreu sensível degradação. Isso, porém, apenas exige maior cuidado nas operações e uma conseqüente diminuição do fluxo aéreo. O Comando da Aeronáutica pode enfrentar a situação se tiver recursos e o tempo necessário para aplicá-los nos setores que deles precisam -desde que tenha autoridade para gerenciar o sistema sem intervenções políticas e despreparadas.
Quanto à Anac, creio que uma profissionalização de seus quadros levaria a uma maior coordenação com a Aeronáutica e a Infraero e a uma maior eficiência operacional. Mas isso leva um tempo que não deve nem pode ser imposto de fora para dentro. Quanto à Infraero, só uma auditoria externa nas suas administrações poderá esclarecer onde e como seus recursos foram aplicados.
Se a responsabilidade com a segurança de vôo por parte das autoridades brasileiras for considerada a sério e o respeito pelos usuários se tornar uma norma a ser aplicada, poderemos em um tempo mais curto sair da turbulência e, mesmo com uma administração mais civil, voar em um belo céu de brigadeiro.


RENATO CLÁUDIO COSTA PEREIRA, 70, é major brigadeiro-do-ar reformado. Foi secretário-geral da Organização da Aviação Civil Internacional por dois mandatos (1997 a 2003), tendo sido o único brasileiro a ocupar o cargo, e presidente da Comissão Latino-Americana de Aviação Civil por dois mandatos (1992-1996).

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