|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Pela democracia, o Senado deve acabar
RUI FALCÃO
A existência do Senado é um desserviço à democracia brasileira. É chegada a hora de discutir o fim do sistema bicameral do país
A ABSOLVIÇÃO do senador Renan Calheiros pode contribuir,
paradoxalmente, para aperfeiçoar a democracia se a reflexão sobre
o escândalo transpuser as considerações de caráter circunstancial.
O episódio repulsivo oferece a
oportunidade de avançar no diagnóstico e na solução da crise da representação. Uma crise que se manifesta no
fosso crescente entre a vontade dos
representantes e a dos representados
e se materializa na existência do sistema bicameral brasileiro.
Com isso, não se sugere ignorar a
excrescência da sessão e votação secretas: a publicidade dos atos parlamentares é instrumento inalienável
do exercício da cidadania e uma exigência da República e do Estado democrático de Direito. Com o sigilo, os
senadores rebaixaram a política à "arte de impedir as pessoas de participar
de assuntos que propriamente lhes
dizem respeito", no entender de Paul
Valéry.
Como parlamentar e militante petista, expresso minha divergência
também quanto a se ter liberado a
bancada do PT para votar como quisesse, decisão que serviu de pretexto a
setores da mídia e da oposição para
atribuir ao partido a responsabilidade
pela absolvição. Da mesma forma, é
inexplicável a abstenção: a quem não
estava convencido da quebra de decoro cabia a opção conseqüente de votar
pela absolvição.
Mas o que mais importa é constatar
que a existência do Senado Federal é
um desserviço à democracia brasileira. Não apenas por esses episódios de
denúncia de corrupção mas também
pela fraude ao pacto federativo, ao sistema representativo, pelo seu poder
revisor ante a Câmara dos Deputados
e -a partir de 1988- ampliado com a
faculdade de propor leis.
Como instituição, o Senado foi introduzido no Brasil à época do império e ainda hoje traz consigo vestígios
do mando monárquico e cacoetes oligárquicos das velhas repúblicas.
Assim, além de casa legislativa, o
Senado tinha atribuições de corte judicial, para os delitos cometidos por
membros da família imperial, ministros, conselheiros, secretários, senadores e deputados. Ou seja, os caminhos usuais da Justiça não convinham a esse tipo de gente, que demandava foro especial.
É chegada a hora de discutir o fim
do sistema bicameral do país, eliminando o Senado e definindo um modelo de representação unicameral
adequado e igualitário, que assegure a
diversidade e a expressão federativas.
A duplicidade de funções no Legislativo federal contribui para distorcer
duplamente o sistema de representação proporcional. Primeiro, por consagrar uma desproporção entre o percentual de eleitores de cada Estado e
o de cadeiras na Câmara dos Deputados. Segundo, por associar a essa situação, agravando-a ainda mais, o caráter não proporcional do número de
cadeiras no Senado, onde os Estados
contam com o mesmo número de representantes, independentemente da
variação no número de seus eleitores.
A Casa revisora, que representa as
unidades da Federação, dispõe de
mais poder que a Casa dos representantes do povo, pois sobre a vontade
da Câmara de aprovar prevalece a
vontade do Senado de rejeitar.
Não é de esperar que tal distorção,
geradora de privilégios antidemocráticos, seja corrigida por iniciativa de
seus beneficiários diretos -os parlamentares, em especial os senadores.
Daí a necessidade da convocação de
uma assembléia constituinte exclusiva para a reforma política, que se
oriente pela necessidade de prover de
substância democrática as instâncias
de representação.
Enquanto a constituinte exclusiva
não vem, o projeto de reforma política
em tramitação na Câmara poderia incluir algumas mudanças paliativas,
como a de confiar ao Senado exclusivamente as funções referentes às
questões da Federação e do Estado.
Além disso, por que não reduzir o
mandato senatorial de oito para quatro anos, como ocorre com os demais
cargos eletivos, e sujeitar os suplentes
ao escrutínio do voto?
Por que não eliminar o sigilo nos
atos parlamentares?
Há, pois, iniciativas a tomar, mais
adequadas do que a proposta pueril
de voto nulo nas eleições para o Senado. Pois, enquanto existir, o Senado, a
despeito de sua malformação, representará um espaço institucional de
disputa política que, "malgré lui", deve ser utilizado pelas forças progressistas para fazer avançar a democracia brasileira.
RUI FALCÃO, 63, advogado e jornalista, é deputado estadual pelo PT. Foi deputado federal, presidente do PT e secretário municipal de Governo de São Paulo (gestão Marta
Suplicy).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Vinod Thomas: Destruição ambiental ameaça crescimento Próximo Texto: Painel do Leitor Índice
|