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O discurso do papa e a modernidade
LUIZ FELIPE PONDÉ
O papa é difícil porque não se move nos limites da "estética da diversidade cultural", modo sofisticado de flacidez intelectual e ética
TODO PENSAMENTO que percebe um problema estrutural no
projeto racional da modernidade é de difícil apreensão justamente
porque não tem uma vocação historicamente voltada para a retórica das
massas -que banaliza tudo em favor
da "democratização dos saberes", como bem perceberam Burke e Tocqueville. É sempre um risco andar fora
dos muros da banal indústria da crítica cultural herdeira de Rousseau.
A monotonia implantada no pensamento desde os movimentos revolucionários do século 18 ainda faz sentir
sua inércia. Bento 16 conhece filosofia
para além do senso comum "iluminista". Seus textos demandam repertório erudito e abertura para ultrapassar clichês intelectuais que barateiam
o debate, do tipo: "Ele é um reacionário contrário à biodiversidade".
O discurso de Regensburg [uma aula magna na universidade, na qual o
papa associou o profeta Maomé à violência] parte do elogio da "velha universidade", pobre tanto em luxos administrativos quanto em "tecnologias
da informação", mas rica em um debate intelectual direto entre docentes
e alunado -hoje atolados no pântano
da burocracia e das políticas da produtividade.
O papa é difícil porque não se move
nos limites da "estética da diversidade cultural", modo sofisticado de flacidez intelectual e ética: o multiculturalismo deságua em debates que não
podem durar mais do que 30 minutos
sem que seja servido o coquetel, sob
risco de perdermos a compostura da
tolerância barata.
A peça de Regensburg se fecha com
um chamado para o diálogo entre as
culturas: o problema é que a forma de
diálogo proposto pelo papa fere a sensibilidade do multiculturalismo, alérgica à textura indesejável da realidade. A dor do discernimento está fora
de moda.
No meio da peça, duas críticas claras: a primeira, ao uso da violência religiosa (a referência ao islamismo que
destruiu Bizâncio: a condenação explícita à "Guerra Santa"), e a segunda,
essencial na economia argumentativa
do texto, ao positivismo científico (a
referência à intolerância epistemológica materialista, tipicamente ocidental, razão de nossa paralisia intelectual diante do fundamentalismo).
O foco positivo da peça é um elogio
à idéia de Deus como lógos e ao diálogo religioso como desdobramento
dessa idéia (trata-se da "helenização
da Revelação abrâamica").
Estando entre Jerusalém e Atenas,
Bento 16 faz aqui um elogio claro às
virtudes de Atenas (reconhecendo-as
como essenciais à vida religiosa): ferir
o lógos é agir contra Deus, portanto, o
modo de fazer diálogo religioso é
mesclar os profetas do deserto com a
busca socrático-platônica. E mais: a
dimensão do "sobrenatural" só começa no ápice da experiência racional, e
não contra ela.
Nesse sentido, converter pela espada é um erro teológico (erro esse que,
evidentemente, já foi cometido por
várias religiões e não é exclusivo de
certos setores do islamismo).
A sensibilidade ocidental contemporânea percebe, com um horror infantil, que problemas "medievais"
não foram resolvidos pelo bê-á-bá
moderno, que resolve tudo delirando
com um ser humano que não existe,
mas que se afoga cotidianamente na
fragmentação das esferas compartimentadas da vida: a agonia dos aeroportos internacionais lembra comicamente o terror das cruzadas, em meio
à estética brega dos "free shops".
O núcleo da crítica não é ao fundamentalismo islâmico, mas à fanática
exclusão da vocação humana para a
reflexão teológica (que abandona o
ser humano à espada ou às banais tecnologias da modernidade): o secularismo é que não entende o fundamentalismo, pensando que se pode "resolver" o problema com um coquetel de
produtos multiculturais.
Na realidade, grande parte de nós,
ocidentais, pensa (silenciosamente)
que tudo se resolveria se "eles" compreendessem de uma vez por todas
que é possível crer (como nós) sem levar a sério essa crença, bastando dissolvê-la na idéia de que "tudo é cultura", do acarajé a Alá, passando por
uma música dos Beatles e pelo Jesus
que dança.
A violência da peça de Regensburg
não está na aparente quebra do protocolo diplomático por parte do papa
(dizendo que é feio matar em nome de
Deus), mas na sua clara recusa de
manter o debate no viés de uma mera
"pastoral da modernidade". Sua fala
rompe, ruidosamente, o sono dogmático que se instalou entre nós desde o
século 18.
LUIZ FELIPE PONDÉ, filósofo, é professor do programa de
pós-graduação em ciências da religião do Departamento
de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da
FAAP. É autor de, entre outros títulos, "Conhecimento na
Desgraça" (Edusp, 2004).
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