São Paulo, sexta-feira, 20 de outubro de 2006

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O discurso do papa e a modernidade

LUIZ FELIPE PONDÉ

O papa é difícil porque não se move nos limites da "estética da diversidade cultural", modo sofisticado de flacidez intelectual e ética

TODO PENSAMENTO que percebe um problema estrutural no projeto racional da modernidade é de difícil apreensão justamente porque não tem uma vocação historicamente voltada para a retórica das massas -que banaliza tudo em favor da "democratização dos saberes", como bem perceberam Burke e Tocqueville. É sempre um risco andar fora dos muros da banal indústria da crítica cultural herdeira de Rousseau.
A monotonia implantada no pensamento desde os movimentos revolucionários do século 18 ainda faz sentir sua inércia. Bento 16 conhece filosofia para além do senso comum "iluminista". Seus textos demandam repertório erudito e abertura para ultrapassar clichês intelectuais que barateiam o debate, do tipo: "Ele é um reacionário contrário à biodiversidade".
O discurso de Regensburg [uma aula magna na universidade, na qual o papa associou o profeta Maomé à violência] parte do elogio da "velha universidade", pobre tanto em luxos administrativos quanto em "tecnologias da informação", mas rica em um debate intelectual direto entre docentes e alunado -hoje atolados no pântano da burocracia e das políticas da produtividade.
O papa é difícil porque não se move nos limites da "estética da diversidade cultural", modo sofisticado de flacidez intelectual e ética: o multiculturalismo deságua em debates que não podem durar mais do que 30 minutos sem que seja servido o coquetel, sob risco de perdermos a compostura da tolerância barata.
A peça de Regensburg se fecha com um chamado para o diálogo entre as culturas: o problema é que a forma de diálogo proposto pelo papa fere a sensibilidade do multiculturalismo, alérgica à textura indesejável da realidade. A dor do discernimento está fora de moda.
No meio da peça, duas críticas claras: a primeira, ao uso da violência religiosa (a referência ao islamismo que destruiu Bizâncio: a condenação explícita à "Guerra Santa"), e a segunda, essencial na economia argumentativa do texto, ao positivismo científico (a referência à intolerância epistemológica materialista, tipicamente ocidental, razão de nossa paralisia intelectual diante do fundamentalismo). O foco positivo da peça é um elogio à idéia de Deus como lógos e ao diálogo religioso como desdobramento dessa idéia (trata-se da "helenização da Revelação abrâamica").
Estando entre Jerusalém e Atenas, Bento 16 faz aqui um elogio claro às virtudes de Atenas (reconhecendo-as como essenciais à vida religiosa): ferir o lógos é agir contra Deus, portanto, o modo de fazer diálogo religioso é mesclar os profetas do deserto com a busca socrático-platônica. E mais: a dimensão do "sobrenatural" só começa no ápice da experiência racional, e não contra ela.
Nesse sentido, converter pela espada é um erro teológico (erro esse que, evidentemente, já foi cometido por várias religiões e não é exclusivo de certos setores do islamismo).
A sensibilidade ocidental contemporânea percebe, com um horror infantil, que problemas "medievais" não foram resolvidos pelo bê-á-bá moderno, que resolve tudo delirando com um ser humano que não existe, mas que se afoga cotidianamente na fragmentação das esferas compartimentadas da vida: a agonia dos aeroportos internacionais lembra comicamente o terror das cruzadas, em meio à estética brega dos "free shops".
O núcleo da crítica não é ao fundamentalismo islâmico, mas à fanática exclusão da vocação humana para a reflexão teológica (que abandona o ser humano à espada ou às banais tecnologias da modernidade): o secularismo é que não entende o fundamentalismo, pensando que se pode "resolver" o problema com um coquetel de produtos multiculturais.
Na realidade, grande parte de nós, ocidentais, pensa (silenciosamente) que tudo se resolveria se "eles" compreendessem de uma vez por todas que é possível crer (como nós) sem levar a sério essa crença, bastando dissolvê-la na idéia de que "tudo é cultura", do acarajé a Alá, passando por uma música dos Beatles e pelo Jesus que dança.
A violência da peça de Regensburg não está na aparente quebra do protocolo diplomático por parte do papa (dizendo que é feio matar em nome de Deus), mas na sua clara recusa de manter o debate no viés de uma mera "pastoral da modernidade". Sua fala rompe, ruidosamente, o sono dogmático que se instalou entre nós desde o século 18.


LUIZ FELIPE PONDÉ, filósofo, é professor do programa de pós-graduação em ciências da religião do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da FAAP. É autor de, entre outros títulos, "Conhecimento na Desgraça" (Edusp, 2004).

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