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São Paulo, terça-feira, 21 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O sonho tem de continuar

JOÃO HERRMANN NETO

"Malo periculosam libertatem quam servitium quictum!"
Entre as várias leituras que agora se fazem, e, com certeza, se farão no futuro a respeito das eleições de 2002, as que mais abundam são sobre prognósticos para o futuro do país. Tendência que poderia até ser festejada se não fosse, no mínimo, aventureira.
O acontecimento da vitória de Lula só se assemelha, em proporções históricas, a 1889, quando se instalou a República no Brasil -logo após o tardio final da ignominiosa escravatura humana. Condes, viscondes e barões só entenderam seu papel -sem corte- décadas depois do início da nossa vida republicana. Agora, como num átimo, todos querem tudo entender e explicar.
Construir um país sob a nova ordem será uma tarefa árdua, sujeita a recuos e equívocos, a avanços e progressos, mas jamais teremos de volta o passado e o retrocesso. Se houver falhas na nova estruturação institucional que nosso povo está produzindo, com certeza, a velha elite não terá o comportamento que tinha outrora.
Após o império e um século republicano, trata-se do começo de uma nova era para o país. Sem supor qual será, devemos trabalhar para que ela tenha uma sociedade democrática, plural e justa, buscando um Brasil soberano e em paz, com igualdade social.
A mesma velha sociedade -o mesmo país- jamais existirá novamente, embora tenhamos ainda um povo sem ampla cidadania e sem gozo de seus plenos direitos políticos. O que temos na nossa sociedade é uma enorme gana de transformações soprada pelos ventos dos desejos sociais, que baforam hoje de um lado e, se pouco mudar, amanhã o farão em outra direção -sem alterar o sentido da mudança.
Afinal, num país sem consciência política e repleto de frustrações, os que perdem a esperança são em maior número do que os que a mantêm. E minoria política, sem ideologia, é derrotada pela maioria eleitoral.
Eis a virtude da democracia.
Seus ventos são lições que derrubam as barreiras da ignorância e os que não lutam pela igualdade. E, qual ressaca, vão continuar batendo para que, um dia, os governos sejam submetidos, como Estados democráticos, à vontade coletiva e soberana da sociedade. Serão vários embates, de duração indefinida, mas a vitória da democracia -como prática permanente da sociedade- é inexorável, sepultando o discurso "democratista" da sua prática como tática provisória.


O que temos na nossa sociedade é uma enorme gana de transformações soprada pelos ventos dos desejos sociais


Observemos o passado, o que sempre é mais confortável -embora, muitas vezes, a miopia se acentue-, e olhemos o recente ano de 2001, o primeiro de um novo milênio. Toda a mídia do país, com raras exceções, reportava diariamente que a candidatura de Lula só serviria para a disputa do primeiro turno, que o segundo turno, no Brasil, tinha sido feito para derrotar Lula e Maluf, que toda a classe média, as elites produtivas rural e industrial-urbana e os setores financeiros abominavam o "PT e seus barbudos".
A mídia apregoava que o mundo tinha medo de uma sucessão que se fizesse pela esquerda, como se a alternância no poder fosse uma ultrapassagem de veículos em rodovias inglesas. Criou-se um Gulliver chamado "mercado", a quem foram dadas a voz estrangeira dos credores internacionais e a cor verde de um real batido pelo dólar (no único país em que ele subia). O mercado dizia que a vitória da oposição soterraria a economia sob os escombros da inflação.
Isso sem olhar os candidatos, suas cartas aos brasileiros ou nas mangas, mas vendo os eleitores. Mas estes varreram todos os dogmas midiáticos eleitorais que se apresentavam como fantasmas, e "a esperança venceu o medo".
Lula Presidente.
Foi assim! Não sei se assim será!
É difícil entender o povo, principalmente quando, "à mineira", nos manda recados em que ele diz que está indo para um lugar, mas, na realidade, ele está caminhando em outra direção.
Ouçamos o rumo do povo.
No primeiro e no segundo turnos, dos 115 milhões de eleitores, entre 85 milhões e 86 milhões deram seu voto a algum candidato a presidente. No primeiro turno, houve o primeiro aviso. Afinal, 76,8% votaram na oposição -Lula (46,44%), Ciro (11,97%), Garotinho (17,87%), José Maria (0,47%) e Pimenta (0,05%). A diferença para o candidato situacionista -Serra (23,2%)- foi de 53,6 pontos percentuais.
Vitória esmagadora da oposição!
No segundo turno, dois candidatos se repetiram como oposição e situação. Disputaram Lula (61,3%) e Serra (38,7%), e a diferença entre o "governo FHC" e a "vontade popular de mudança" foi para 22,6 pontos percentuais, uma diminuição de quase 60% em relação à diferença do primeiro turno, realizado apenas 21 dias antes. O candidato Serra diminuiu a diferença para 22,6 pontos percentuais.
Recuperação esmagadora do governo?
O povo, oh, povo, indômito povo, está mandando um recado. O que ele quer dizer? Aonde quer ir?
Eis a percepção atroz que os líderes buscam ter, para que, por aleivosia ou petulância, não fiquem tão à frente da nossa gente que não possam por ela ser vistos. Ou ainda para que não fiquem tão atrás que possam ser por ela atropelados na marcha inextinguível do futuro.
O Brasil começou a mudar. Governos são transitórios e passam. A nação e seu povo são parceiros indeléveis e indissociáveis do seu destino. O amanhã será!
Traçar o destino de um país não compete às vozes vãs e distantes, como o rufar de tambores. Construí-lo é uma tarefa difícil, lenta e solidária que não pertence aos predestinados ou heróis, mas ao talento paciencioso de quem ouve a história não como um murmúrio de opressão, mas como o clamor da liberdade.
Aos libertos, dirijo a reflexão. Aos que lutam por ela, deixo a lição dos que se dedicaram a derrubar todos os tipos de escravidão.

João Herrmann Neto é deputado federal (PPS-SP) e líder do partido na Câmara dos Deputados.


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