São Paulo, quinta, 21 de janeiro de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Não, não é fácil


Nem todo o dinheiro do FMI, e de todos os países ricos do mundo, seria suficiente para bancar o jogo do bobo


SAULO RAMOS

Um dos maiores defeitos do real foi a falta de realidade. Não existe moeda "forte", ou estável, pagando juros de até 50% ao ano. Transformou-se, por isso, no mais rendoso investimento especulativo do mundo. Daí a importância que passou a ter lá fora, batendo o prestígio do futebol, do samba e do Carnaval.
A especulação tem objetivo certo: o lucro fácil. O real passou a ser carta marcada, número de roleta viciada. Era jogar e ganhar. Ora, quem obteve lucros sabia também que o processo não duraria para sempre. Chegou, depois de quatro anos, a hora de dolarizar os ganhos usando os reais acumulados para comprar dólar barato, numa irônica operação a que os economistas chamam de "realizar" lucros. E, assim, começaram a ir embora bilhões de dólares (quase 40) de nossas reservas, docilmente vendidas pelo bobo do governo brasileiro.
Aí "aconteceram" o FMI e os países ricos com uma advertência simples: emprestariam dinheiro ao Brasil para evitar o pior (inclusive para eles, que investiram aqui), mas não queriam ver esses recursos "vendidos" baratinho ao especuladores, que estavam "realizando" lucros.
O bobo fez uma pequena mudança na taxa da chamada banda cambial: aumentou 8% o preço do dólar. Foi o recado para a esperta especulação. Quem muda uma vez, muda outras. Com 8%, o dólar ainda era muito barato. E lá se foram mais US$ 5 bilhões em três dias. Nem todo o dinheiro do FMI, e de todos os países ricos do mundo, seria suficiente para bancar o jogo do bobo. A esse preço, até investidor sério venderia o que tivesse no Brasil e compraria dólares para ir embora. Logo, era irreal a cotação do real fixada nas bandas cambiais, de maior utilidade para bandoleiros do que para finanças sérias.
Um cangaceiro, bandoleiro dos sertões, contava a história: "Quando começou o tiroteio, o jeito foi saltar de banda para não levar chumbo". O governo, afinal, saltou de banda. Parou de babar e de vender dólares.
Todos esses "acontecidos" são típicos da política monetarista, aplicada no Brasil em nome do combate à inflação e da estabilidade monetária, duas premissas incontestáveis, mas que não podem ser sustentadas artificialmente.
E o monetarismo inconsequente teve (tem sempre) um preço: as indústrias foram fechando, o comércio entrou em colapso, a agricultura estrangulou-se e o mais cruel dos resultados de tudo isso conjugado foi a brutalidade do desemprego em massa. Viramos sociedade de consumo sem consumidores. Monetarismo puro.
E agora? Somente o câmbio livre será suficiente para decretar nossa salvação? As indústrias recuperam a capacidade produtiva? A agricultura passa a produzir e a exportar? Os juros baixam? O desemprego vai acabar? Ou voltamos à bobagem da banda e das bandagens?
Não, infelizmente não é assim. Podemos viver, como tantas vezes, mais uma euforia enganosa a prazo curto, mas temos que curar a origem de nossos males. São as contas públicas as responsáveis por todas as nossas desgraças: o déficit, a dívida e as dúvidas, o curandeirismo dos congelamentos, dos monetarismos, dos juros altos, das âncoras cambiais, das artificialidades, das bandas e das bandalheiras. Por que as contas públicas? Porque são as que causam a inflação, só isso.
Se os gastos públicos continuarem acima das receitas, desviados de seus fins e aos níveis absurdos dos tempos atuais, não haverá salvação definitiva. E gastos públicos são todos, os federais, estaduais e municipais. Somente as mágicas episódicas improvisarão o ilusionismo de alívios temporários, mas a preços insuportáveis no final de cada repertório.
Se as contas públicas gerais, todas, sem exceção, forem saneadas, não haverá mais segredo: as indústrias crescerão, a agricultura explodirá de riquezas e o comércio será ativado porque os empregos virão normalmente. Emprego é salário e salário é consumo. Tudo pode acontecer sem a maldição inflacionária e, finalmente, com moeda estável e verdadeiramente forte, que não precisa de juros altos.
Mas é tão fácil a solução? Não, não é, porque o político brasileiro entende que seus gastos, somente os seus, em nada afetarão o Brasil. E todos pensam do mesmo jeito, no mesmo momento e em todos os lugares. Até para o atual e festejado ajuste fiscal, que pretende equilibrar as contas federais, é preciso dar aos parlamentares verbas no Orçamento para obter seu voto nos cortes de despesas, mas que não atinjam suas bases eleitorais. Somos originais: efetuamos despesas para cortar gastos. Não, não é fácil. Os economistas do governo têm, contudo, a fórmula segura: majorar tributos. Assim o ajuste fiscal, que tramita no Congresso, é uma pândega: aumenta tudo, até multas do Cade, mas corta pouco. Não, não é fácil.
O Brasil, porém, tem potencialidade efetiva, o que não se encontra na Ásia e na Rússia, aquela por adversidade da natureza e esta porque foi impedida, pelo comunismo, de ingressar no século 20. O Brasil, com seus imensos recursos naturais, seu admirável clima, povo de grande criatividade e que trabalha de bom humor, empresários capazes, razoável infra-estrutura, é, sim, a bola da vez para investimentos sérios.
Com as privatizações, capitais produtivos vieram para cá e, claro, querem que o mercado interno se desenvolva para não perderem o que investiram. E terão apoio de seus países de origem. Logo cabe urgentemente aos brasileiros a tarefa de criar as condições de confiança no futuro imediato para rápida retomada do crescimento, exigindo, com energia, determinação geral e aos gritos, de todos os Poderes, o equilíbrio das contas públicas. E com seriedade política. Bem, aí já é querer demais. Não dá para salvar somente com o equilíbrio? Dá, mas não é fácil.


José Saulo Pereira Ramos, 69, é advogado em São Paulo. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).




Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.