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São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 2003

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JOSÉ SARNEY

O cavalo de Adrasto

Gibbon, no seu livro "Declínio e Queda do Império Romano", diz que os romanos, durante a República, lutavam pela liberdade e, no Império, não tendo mais a motivação da liberdade nem inimigos a confrontar, lutavam pelo pretexto da honra e da religião. Os Estados Unidos são o grande império da modernidade.
Augusto, em seu testamento, pediu que Roma, realizada pela glória dos territórios conquistados, mantivesse suas fronteiras, não buscasse mais aventuras e não partisse para novas guerras. Bush pai, ao contrário de Augusto, deixou ao filho a hipoteca da guerra inconclusa do Iraque. Por mais que se procure justificar as motivações da atitude do governo americano de violar a Carta das Nações Unidas, é difícil aceitar que a campanha militar se faça para desarmar o Iraque e resguardar a humanidade de um tirano.
Na Antiguidade, os romanos não sabiam onde era o fim da Terra e podiam limitar-se. Hoje, não há mais limitação. Temos um mundo só, sem fronteiras, globalizado pela comunicação. Todos, em todos os lugares e ao mesmo tempo, vivem a realidade da guerra. Não são mais as notícias das batalhas que nos chegam, mas a visão das próprias batalhas.
Assim, os americanos não têm territórios a conquistar. Lutam no exercício do seu poder de responsáveis pelo futuro da humanidade, tarefa que lhes foi entregue pela história e de que se auto-investiram. É esse messianismo que está por trás das motivações de Bush. Parte desse mecanismo é a invocação dos poderes divinos dessa missão -as referências ao "Império do Mal", as invocações de Deus. É terrível achar que Deus esteja comandando ataques e aviões nos desertos do golfo Pérsico ou que seja tarefa atribuída ao Criador matar iraquianos e lutar nos desertos com tempestades de areia que Ele mesmo faz. E o pior de tudo é saber que Saddam também está ali pelo desejo de Alá, a matar e a cometer atrocidades. São o Deus ocidental e o Deus oriental que estão em luta!
Bush pai invocava sempre o movimento dos "evangélicos brancos", a quem atribuía a sua vitória na eleição de 88. Bush filho invoca o movimento da "reconversão".
Assim como os velhos romanos, os impérios sempre se julgam obrigados a lutar pela religião. Mas nada disso nos dá dimensão de sinceridade.
O que assusta mais do que a destruição de Bagdá é a destruição das Nações Unidas. As bombas que ali estão caindo caíram antes no complexo que, à beira do East River, abriga o sonho de um mundo em busca da paz e da convivência pacífica entre as nações, a sede da ONU. Complexo em grande parte construído pelos Estados Unidos e pela visão de Roosevelt, que ofereceu o território americano para abrigar o organismo encarregado de dar segurança coletiva ao mundo.
Não sabemos das consequências desta guerra. A maior de todas já ocorreu: a falência do sistema montado depois da Segunda Guerra Mundial para manter a liberdade e a paz.
Não confundo a ação de Bush com os Estados Unidos. O perigo é sempre aquele: a concentração da força de um império na mão de um homem sem visão dos valores maiores do gênero humano.
Que tudo isso seja um pesadelo que passe como o cavalo Zero de Adrasto, mais veloz que o vento da história.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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