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JOSÉ SARNEY
O cavalo de Adrasto
Gibbon, no seu livro "Declínio e
Queda do Império Romano", diz
que os romanos, durante a República,
lutavam pela liberdade e, no Império,
não tendo mais a motivação da liberdade nem inimigos a confrontar, lutavam pelo pretexto da honra e da religião. Os Estados Unidos são o grande
império da modernidade.
Augusto, em seu testamento, pediu
que Roma, realizada pela glória dos
territórios conquistados, mantivesse
suas fronteiras, não buscasse mais
aventuras e não partisse para novas
guerras. Bush pai, ao contrário de Augusto, deixou ao filho a hipoteca da
guerra inconclusa do Iraque. Por mais
que se procure justificar as motivações da atitude do governo americano
de violar a Carta das Nações Unidas, é
difícil aceitar que a campanha militar
se faça para desarmar o Iraque e resguardar a humanidade de um tirano.
Na Antiguidade, os romanos não sabiam onde era o fim da Terra e podiam limitar-se. Hoje, não há mais limitação. Temos um mundo só, sem
fronteiras, globalizado pela comunicação. Todos, em todos os lugares e ao
mesmo tempo, vivem a realidade da
guerra. Não são mais as notícias das
batalhas que nos chegam, mas a visão
das próprias batalhas.
Assim, os americanos não têm territórios a conquistar. Lutam no exercício do seu poder de responsáveis pelo
futuro da humanidade, tarefa que lhes
foi entregue pela história e de que se
auto-investiram. É esse messianismo
que está por trás das motivações de
Bush. Parte desse mecanismo é a invocação dos poderes divinos dessa missão -as referências ao "Império do
Mal", as invocações de Deus. É terrível
achar que Deus esteja comandando
ataques e aviões nos desertos do golfo
Pérsico ou que seja tarefa atribuída ao
Criador matar iraquianos e lutar nos
desertos com tempestades de areia
que Ele mesmo faz. E o pior de tudo é
saber que Saddam também está ali pelo desejo de Alá, a matar e a cometer
atrocidades. São o Deus ocidental e o
Deus oriental que estão em luta!
Bush pai invocava sempre o movimento dos "evangélicos brancos", a
quem atribuía a sua vitória na eleição
de 88. Bush filho invoca o movimento
da "reconversão".
Assim como os velhos romanos, os
impérios sempre se julgam obrigados
a lutar pela religião. Mas nada disso
nos dá dimensão de sinceridade.
O que assusta mais do que a destruição de Bagdá é a destruição das Nações Unidas. As bombas que ali estão
caindo caíram antes no complexo
que, à beira do East River, abriga o sonho de um mundo em busca da paz e
da convivência pacífica entre as nações, a sede da ONU. Complexo em
grande parte construído pelos Estados
Unidos e pela visão de Roosevelt, que
ofereceu o território americano para
abrigar o organismo encarregado de
dar segurança coletiva ao mundo.
Não sabemos das consequências
desta guerra. A maior de todas já ocorreu: a falência do sistema montado depois da Segunda Guerra Mundial para
manter a liberdade e a paz.
Não confundo a ação de Bush com
os Estados Unidos. O perigo é sempre
aquele: a concentração da força de um
império na mão de um homem sem
visão dos valores maiores do gênero
humano.
Que tudo isso seja um pesadelo que
passe como o cavalo Zero de Adrasto,
mais veloz que o vento da história.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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