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TENDÊNCIAS/DEBATES
O bebê e a água do banho
BOLÍVAR LAMOUNIER
Li e reli as ponderações do dr. Fábio Konder Comparato com a atenção que merecem, mas não consegui exorcizar meus receios
EM ARTIGO intitulado "Procurando Rousseau, encontrando
Chávez" ("Tendências/Debates", 7/3), opinei que a eventual implantação da reforma política sugerida ao governo pela OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil) teria conseqüências nefastas. Meu texto suscitou algumas reações iradas e um
substancioso comentário do professor Fábio Konder Comparato, fervoroso defensor do projeto, neste mesmo espaço da Folha ("Quem tem medo do povo?", 13/3).
Realmente, minha expectativa era
que a OAB, com sua inegável autoridade, apontasse soluções realistas para os problemas de organização institucional que nos vêm há muito tempo afligindo, em particular o esvaziamento do Poder Legislativo, tema
que obviamente envolve as questões
éticas dramatizadas nos últimos dois
anos e se estende aos partidos políticos e ao sistema eleitoral, entre outros aspectos.
Infelizmente, o projeto OAB/Comparato optou por jogar fora o bebê
com a água do banho. Descrendo quase totalmente da democracia representativa, o texto restringe drasticamente o espaço da representação e
propõe um modelo que, à falta de melhor termo, eu denominaria "cesaro-anarquismo", um híbrido de princípios opostos, ambos levados ao paroxismo. Como seria a operacionalização prática de tal concepção?
Primeiro, o projeto eleva o arbítrio
do Poder Executivo à enésima potência, conferindo ao presidente da República a prerrogativa de convocar
plebiscitos sem ouvir o Congresso
Nacional. Ora, a soma de poderes já
atualmente concentrados no Executivo é de causar arrepios a quem quer
que preze o equilíbrio e a independência mútua das instituições no regime democrático.
Para quebrar a espinha do Poder
Legislativo, ele conta com as medidas
provisórias; para desvitalizá-lo, com
o Orçamento autorizativo; para humilhá-lo, com aquele "milhozinho"
distribuído por meio de emendas
parlamentares individuais. Para sufocar a economia e a capacidade privada de iniciativa, ele dispõe de numerosos instrumentos, desde logo o
gasto público e a correspondente carga tributária, cujos níveis e qualidade
atuais me dispenso de comentar.
Mas isso não é tudo.
Sem cometer a tolice de debitar
tantos problemas na conta do atual
governo, observo que o presidente
Lula inicia seu segundo mandato com
obedientes três quartos ou mais de
apoio na Câmara, aliados carnais nas
presidências da Câmara e do Senado
e lúcida simpatia por parte dos governadores. E, aparentemente, já cogita
se reforçar na área das comunicações,
por meio de uma TV estatal.
No sentido oposto, o projeto institui a intervenção popular no processo decisório numa escala jamais praticada em nenhum país, por meio do
chamado recall (revogação de mandatos por votação popular), instrumento não desprovido de lógica se
aplicado em pequenas circunscrições
eleitorais, com base no voto distrital
puro, a fim de revogar mandatos de
parlamentares, caso a caso.
Mas a fórmula alvitrada pela OAB e
pelo dr. Comparato vai muito além
disso. Referendos revocatórios poderiam ser obrigatoriamente convocados pelo voto da maioria da Câmara
ou mediante abaixo-assinados subscritos por 2% do total de eleitores.
Para revogar qual ou quais mandatos? Resposta: todos.
Tal engrenagem poderia ser acionada e mandar para casa, simultaneamente, todos os deputados e o próprio presidente da República (!) uma
vez decorridos 12 meses das respectivas eleições. Nesse aspecto, é preciso
convir que o egrégio colegiado da
OAB operou prodígios. Transformou
a antiquada espingardinha do recall
numa "cortadora de margaridas", a
temível "daisy cutter" que os americanos andaram despejando nos confins do Afeganistão.
Li e reli as ponderações do dr.
Comparato com a atenção que merecem, mas não consegui exorcizar
meus receios. Com a melhor das intenções, "ça va sans dire", o que o
projeto me parece recomendar é um
Executivo dotado de poderes ainda
maiores que os atuais, com o contrapeso fiscalizador de um Legislativo
reduzido à condição de pedinte andrajoso. Temo, realmente, que tais
idéias desemboquem num populismo autoritário semelhante ao regime
"bolivariano" do coronel Hugo Chávez, cujos supostos avanços democráticos recebem, aliás, rasgado elogio
na justificação da proposta.
BOLÍVAR LAMOUNIER, 63, doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia, Los Angeles (EUA), é consultor de empresas. É autor de, entre outras obras, "Da Independência a Lula: Dois Séculos de Política Brasileira" (Augurium Editora, 2005).
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